Entrevista Coletiva na casa de Anamaria Testa Tambellini? (Rio de Janeiro - 12.11.2004)

Guilherme: [exposição do projeto da pesquisa]

Regina: [apresentação da equipe e da metodologia a ser utilizada na pesquisa]

Ana: eu vim para cá em 1975[1]. O Arouca não veio nessa época, ele estava em Brasília fazendo uma assessoria. Foi quando o Herzog[2] foi preso. Foi tudo preparado pelo Davizinho para que eu, o Arouca e o Pedro saíssemos imediatamente. O Arouca deve ter ficado maluco sem saber para onde tinha ido a família dele. A vinda do Arouca foi no fim de 76. A gente não tinha onde ficar, foi terrível. Realmente foi no ano de 76 que aconteceu a abertura aqui no Rio de Janeiro tanto da Saúde Pública como do pessoal da UERJ.

Reinaldo: A minha sensação é que antes da vinda, eu me recordo de ter me encontrado com você e com o Sérgio no Instituto de Medicina Social, deve ter sido no início de 75... final de 74.

José: Eu acho que o problema aqui não é porque saiu de Campinas, mas porque veio para o Rio de Janeiro. O que eu sei é que havia uma aliança política em torno do Arouca quando ele estava em Campinas no apogeu então, se você perder essa referência Campinas, Londrina e Rio de Janeiro. Eu vim conhecer Paulínia e Dr. Guilherme[3] com Arouca vindo para o Rio. Quer dizer foi aí que eu vim conhecer o movimento da Medicina Social. Quer dizer, para entender o contexto, é necessário conhecer o Arouca potência em Campinas.

Guilherme: Então vamos lá, o que é que dá esse contexto?

Reinaldo: Olha, eu queria falar uma coisa... Porque o Rio de Janeiro? Acho que tem duas coisas que são decisivas nesse contexto. Uma delas foi claramente a ação de uma figura que tem que estar na raiz disso que era um dirigente da Organização Pan-Americana da Saúde que é Juan César García. Bem, naquela época, o Juan estava muito ligado a essa questão da saúde brasileira e no Rio de Janeiro, quer dizer, embora o Juan César tenha viajado a São Paulo, ele acabou decidindo que o Rio de Janeiro era o alvo e aí tinha o Instituto de Medicina Social e a Escola de Saúde Pública e durante muitos e muitos anos foram os dois principais pólos de saúde coletiva. Por outro lado, tinha também o pólo modernizador da potência regional do General Geisel e aí Serginho depois pode falar porque ele estava na FINEP e que foi absolutamente essencial para essas coisas. Porque então o Rio de Janeiro? Porque o Rio de Janeiro era claramente o pólo irradiador do novo pensamento sanitário brasileiro.

José: Do ponto de vista sanitário você tinha uma coalizão dá renovação da saúde pública continental que passava por Campinas, com o Arouca potente, Arouca ainda tinha governabilidade em Campinas e o Dr. Guilherme tinha governabilidade sobre a medicina dele e você (referindo-se a Reinaldo), Ésio e Nina tinham governabilidade sobre o instituto [Instituto de Medicina Social da UERJ]. Então quer dizer, precedendo essa ligação tinha uma aliança reformista que me trouxe. Você (referindo-se a Reinaldo) me importou da Inglaterra por causa dessa aliança reformista. Você quando me mandou à Campinas conhecer Paulínia foi por conta dessa aliança reformista e mais ainda por causa de Nina Pereira Nunes. Foi lá que eu conheci Marília Bernardes Marques. Então você vê, tinha uma aliança para refazer o pensamento sanitário que foi o fundamento de todo o movimento da reforma sanitária brasileira. E aí o Pelé (referindo-se ao Pellegrini[4]) pode falar um pouco mais sobre isso para a gente.

Ana: Só queria dar um depoimento que não se pode esquecer. Eu queria dizer que houve uma generosidade do Rio de Janeiro em nos receber. Isso não significa que nós não fomos em outros lugares, mas o lugar que se abriu para a gente foi o Rio de Janeiro. O lugar de se dar a possibilidade de encontro entre essas pessoas foi aqui.

Reinaldo: Mas o Rio de Janeiro não foi generoso à toa. Até haver uma certa articulação, isso foi um problema. Isso que você está chamando de aliança de renovação do pensamento sanitário da América Latina foi muito combatido porque por outro lado você tinha a FINEP. Quer dizer nos anos de chumbo, estavam matando o Vladimir Herzog, e a FINEP enchendo de dinheiro em cima da saúde pública brasileira.

Guilherme: O que conseguiu fazer a gente, num processo ferrenho de ditadura, transformar o pequeno espaço do Rio num projeto nacional, foi uma militância política de esquerda extremamente vigorosa mesmo na resistência e que pôde estar presente nas instituições e “segurar um pouco a onda?, particularmente no campo universitário, mas como é que foi isso? O que é que conseguiu dar para a gente essa possibilidade de abrir um espaço no Rio?

José: Ele não abriu no Rio, ele traz com ele, é diferente. Eu acho que o Pelé (referindo-se ao Pellegrini) podia falar um pouquinho sobre isso com a gente.

Ary: Eu quero localizar melhor essa conjuntura que o Reinaldo já disse por que no contexto geral prevalecia o projeto de desenvolvimento nacionalista de aparente contradição como o Reinaldo já localizou. Quer dizer, você tinha o Herzog, assassinatos políticos, tortura e etc., e ao mesmo tempo o investimento numa área crítica que é o campo da saúde pública, mas é entender isso dentro do próprio projeto nacionalista do governo militar quer dizer a área da educação se fortaleceu nesse período. Você teve o fortalecimento da escola pública quando o Passarinho[5] foi ministro, quer dizer, isso era uma bandeira nossa. Então tem uma aparente contradição dentro desse projeto que localiza talvez melhor isso tudo também.

Pellegrini: Bem, eu acho que o período de final dos 60 até a vinda para o Rio de Janeiro também é um período importante de ser analisado. Não só o momento específico de 75, 76, porque foi aí que houve a gestação de todo um projeto que no Rio veio a ter dimensão nacional. Tem um movimento das preventivas que remonta Ribeirão e depois tem umas preventivas mais modernas que inclusive fazem a crítica a Ribeirão que eram as de São Paulo, a da Bahia. É engraçado que toda essa visão de saúde, sociedade, etc. isso vem através do ensino médico então nos anos 70 essa questão preventiva está muito ligada ao ensino médico, da mudança do currículo, já fazia a crítica clara daquele médico isolado na atitude preventivista que era o projeto da preventiva anterior. Mas tinha toda uma crítica do ensino médico de se criarem espaços de prática e aí vem a Medicina Comunitária que em Campinas também se testa de várias formas e isso é um movimento que Campinas tem um papel importante, mas outras preventivas também têm no desenvolvimento da Medicina Comunitária, mas tem também essa coisa internacional do García [Juan César García] que também vem da vertente do ensino médico acho que o livro mais importante do García nesse momento é justamente o livro em que ele faz a crítica às escolas médicas e propõe a criação de alguns pólos de inovação como os Xochimilco no México e o Instituto de Medicina Social aqui no Rio. Então isso tudo vai permitindo a gestação desse projeto que aqui no Rio vai assumindo uma nova dimensão.

Regina: Mas aí o Arouca já tinha todo um projeto...

José: Mas aí, eu acho que é necessário compreender que a tese une todas essas questões. Eu acho que aí é que entra a questão de um projeto de reforma sanitária brasileira porque é o que nos mantinha unidos e que existe até hoje apesar de alguns quererem trair em troca de outras coisas menores que não estão em questão, mas... Enfim, esse é o modelo que serve de solo fértil. Aí que eu acho que a gente tem que ir para a frase do Reinaldo.

Ana: Eu acho que essa visão de que o Arouca tinha um projeto... O Arouca era um tipo de pessoa... Eu não estou discutindo, podia até ter gente que sabia mais do que ele, mas o Arouca tinha uma qualidade de falar o que os outros entendiam e o que os outros queriam dizer com uma propriedade incrível. Ele sabia de alguma forma, ele encarnou o projeto coletivo. Não é isso de que o Arouca tinha um projeto, era o coletivo que tinha o projeto e o Arouca fez um trabalho que só uma pessoa extraordinariamente bem dotada intelectualmente e tremendamente sensível como o Arouca era, era capaz de fazer aquilo. Além de tudo era uma pessoa que tinha uma abertura para o afeto coletivo muito grande. Então essa característica do Arouca, o irmão dele vai lhe dizer, ele tinha desde jovenzinho e ele levou essa característica talvez até morrer, não sei, mas no que eu acompanhei do Arouca ele sempre teve essa coisa. O que o Arouca fez foi representar, encarnar o projeto de um coletivo. Eu acho que o traço mais distintivo do Arouca é o traço da militância. O Arouca era militante desde os 15 anos de idade e foi assim até o fim da vida dele e ele não esmorecia. Eu acho isso admirável. Todos os outros problemas do Arouca foram sobrepujados em nome de um trabalho em coletividade. Eu acho que dizer que ele tinha um projeto é uma injustiça a ele, ele preferia dizer que nós tínhamos um projeto.

Sérgio: Eu vou fazer uma coisa um pouco diferente do Reinaldo que está fazendo meio que uma História Social para fazer mais uma História das Mentalidades. Nada contra, mas é engraçada essa contradição que o Reinaldo falou. Quer dizer, de um lado você tem o Geisel em plena ditadura colocando um dinheiro negro na área social, era muito dinheiro! E um dos canais básicos era a FINEP. E como é que isso aconteceu: eu entrei na FINEP por um caso por que em 69 eu fui professor da ENSP. Quando eu apresentei meu currículo para trabalhar na FINEP viram que eu tinha uma experiência em saúde e economia, isso ninguém tinha naquela época e fui para lá para montar uma área de desenvolvimento social dentro da FINEP e a gente dentro dessa área, “pô?, vocês se lembram, a FINEP financiou o Instituto de Medicina Social, financiou o EMOP em Pernambuco, financiou o Nise da Silveira, aqui no Centro financiou o Pedro II, financiou o INAM, financiou o SEME, financiou uma fortuna! Era muito dinheiro que “rolava?! Eu não sei quem, mas eu acho que o maluco era eu com o Eduardo Costa, não me lembro, eu disse: “vamos fazer um programa na Escola de Saúde Pública?, porque a Escola de Saúde Pública não é o que era o Instituto de Medicina Social, não existia um baluarte organizado de esquerda dentro da ENSP, não, e dentro da Fundação, é claro que existiam pessoas, mas não era como no Instituto de Medicina Social. A ENSP não era nada, era uma coisa largada, não valia nada. Era uma coisa em decadência, na verdade. Eu e Eduardo “juntamos?, eu não me lembro bem da sigla, mas eu acho que eram 30 milhões de cruzeiros, de “merrecas?, sei lá qual era a moeda da época, e o Eduardo fez um grande projeto de epidemiologia onde também tinha um projeto de hipertensão, o Luís Fernando entrou nisso, o Mariani acabou entrando nisso. Era o projeto maior, o PEPPE, e tinha um projeto menor que era o PESES, que era o Programa de Estudos Sócio-Econômicos de Saúde, e o PEPPE, Programa de Estudos e Pesquisas Populacionais Epidemiológicas. Então o Eduardo queria montar e não tinha, aí eu chamei o Arlindo. Aí o Arlindo (eu me lembro como se fosse hoje), eu cheguei para o Arlindo[6] e disse: “olha, tem 30 milhões aqui?. Aí ele disse: “não, não é verdade, tem 300 milhões porque o Ministério da Saúde...? Não sei que lá... Bem, o que eu sei é que o Arlindo não quis participar disso... Sei lá, acho que ele achou que era pouco (risos), não sei... Só sei que ele foi chamado e não quis participar disso. Eu não sei, mas eu acho que o Arlindo não quis participar porque o projeto dele não tinha nada a ver com isso, não sei...? Eu acho que ele tinha boas razões... Acho melhor perguntar isso para ele. Então era o seguinte: precisava de alguém de dentro da escola, não tinha ninguém, não tinha ninguém! Então como é que o Arouca fez isso... Vai me desculpar, mas aí não tinha nenhuma articulação política ou conexão latino-americana, “tá? entendido? (risos) Para o Arouca vir para cá! O Arouca veio para cá da seguinte maneira: eu conheci e fui muito amigo da Liana Maria Audeliano, que vocês conhecem, que trabalhava em Campinas, amicíssima, a Liana morava na mesma fazenda que o Caniço, lá em Paulínia. Caniço que era uma figura maravilhosa, foi um dos inspiradores do tropicalismo, “by the way?, era um baiano amigo de Dedé e Caetano e ele era o tropicalismo em pessoa. Ele era médico, também trabalhava em Campinas e tinha sido professor na Bahia. Eu falei com o Caniço, e ele: “eu tenho uma pessoa para você?. Eu nunca na minha vida tinha ouvido falar em Antônio Sérgio Arouca, eu quero deixar isso claro! Eu não tinha a menor idéia do que era o movimento preventivista! Eu não era do mesmo grupamento, mas era uma pessoa de esquerda. Quer dizer, naquela época nós éramos mais generosos! Nós confiávamos cegamente no que os nossos companheiros diziam. Isso é uma mudança que nós todos sentimos. Aí eles têm essa pessoa. Aí veio um dia, Sérgio Arouca e Anamaria, foram para o apartamento do Arlindo. Aí, foi aí que veio o Arouca, com ele... Várias outras pessoas.

José: Você não é amigo do Olavo de Carvalho, é? Então nem tudo é assim, não é? A História dos detalhes ela tem um pano de fundo que a tece. O que eu “tô? querendo dizer é que você não pode desprezar um conjunto de conseqüências para reduzir a vida do Arouca numa crônica de costumes...

Ana: Ô Noronha (referindo-se ao José), eu acho que você não está entendendo que a gente não tinha o Rio de Janeiro como primeira opção. A nossa primeira opção era São Paulo...

José: “Tá? bem! Mas você tinha o campo bem limitado. Você não podia pensar em Pernambuco, no Amazonas... Uma coisa é você dizer que um dia pela manhã você se levantou, foi caminhar pela praia e chegou no Rio...

Ana: Calma, também não é assim. Nós queríamos ir para São Paulo, primeiro, nós não queríamos sair de Campinas. Nós resistíamos ao máximo. Nós tínhamos um grupo lá. Todos em discussão porque nós tínhamos um projeto lá, “tá?!

Reinaldo: O grupo era vinculado ao “Partidão? naquele momento?

Ana: A maioria era.

José: Isso tudo pesa! É só para entender como é que essa coisa funciona...

Ana: Segundo, nós queríamos ir para São Paulo, mas São Paulo não tinha condições objetivas. O Dr. Guilherme e a Cecília Donangelo, que não pode ser esquecida, porque a nossa coisa de ir para São Paulo tinha muito a ver com a nossa identidade, com a cabeça da Cecília Donangelo. Só que não houve condições objetivas de ir para lá. Durante algum tempo nós “pererecamos?. Nós viemos aqui porque não era o Rio de Janeiro e nem a ENSP, era o Instituto de Medicina Social que politicamente para a gente, abriu um espaço que nós éramos companheiros. Era aquilo... Era um sonho o Instituto de Medicina Social...

?José: Eu quero dizer é o seguinte: eu não quero recusar de Foucault as mesquinharias da História, mas eu quero dizer que há um macro movimento da História que faz as mesquinharias crescerem. Não podemos reduzir a História a História de costumes e a pequenos detalhes...

Ana: Calma, deixa eu contar tudo...

Reinaldo: Eu acho que esse depoimento da Ana... “Queríamos ir para São Paulo, mas, não havia condições objetivas, então a fruta gostosa era o Instituto de Medicina Social?, para mim é absolutamente claro, quer dizer, é... O Instituto de Medicina Social de certa maneira era anti-USP. A USP era aquela coisa pesada, “tá? entendendo? Aquela coisa jalecosa... Competente sem dúvida nenhuma, mas para entrar ali, Dr. Guilherme já estava tomando porrada até não agüentar mais, “tá? entendendo?

Ana: E a Cecília também...

Reinaldo: O Dr. Guilherme... Um mulato, baiano e comunista... E a Cecília apesar de branca era comunista...

Ana: E não era médica, era socióloga... [referindo-se a Cecília]

Reinaldo: Então Dr. Guilherme já estava levando cacetada de tudo quanto era lado, já estava com todas as dificuldades... Eu não sei se ele já era titular naquela época...

Ana: Já!

Reinaldo: Então o que é que era o Instituto de Medicina Social? É oposto disso. Primeiro era um grupo pequeno, absolutamente novo, independente da Faculdade de Medicina, mas que tinha um vínculo seminal com uma liderança católica, liberal, progressista que era o Dr. Américo Piquet Carneiro, quer dizer, e Nelson Moraes que estava chegando, que ali era pragmático. E dirigido efetivamente por dois jovens comunistas que eram a Nina Pereira Nunes, que sempre teve a maior parte da visão política daquilo tudo; Ésio Cordeiro que era um bom estudante, um bom profissional, um cara centrado, tudo aquilo que a Nina tinha de descentrado ele tinha de centradinho, direitinho... Que era a tetéia do Dr. Piquet, “tá? certo? E com o apoio internacional do Juan César García. Isso...

José: Foi dirigido pelo Mário Chagas também...

Reinaldo: Não... O Mário Chagas veio um pouquinho depois...

José: Sim, mas eu “tô?querendo dizer que tem uma trajetória cumulativa...

Reinaldo: Então para mim é isso. Fica absolutamente claro porque aquilo era a tetéia. Era a possibilidade, “né??... O rabo da baleia ou a cabeça da sardinha... Mesmo que não houvesse questão política nenhuma envolvida, a USP... É o rabo da baleia...

José: Até hoje...

Ana: “Peraí?, tem uma coisa antes... Tinham algumas ofertas antes, no tabuleiro. Uma das ofertas era Brasília, Prof. Frederico Simões Barbosa, nunca vou me esquecer disso. Nós fomos... O Arouca ainda fazia uma assessoria “pro? Ministério. Ele me chamou vamos lá... Porque era Eduardo Quertes, do INAM, que tinha uma ligação com vocês também, e ele, o baiano como chamavam o... Duarte... José Duarte... Eram três pessoas em Brasília que vieram nos oferecer, lembra Pelé? (referindo-se ao Pellegrini) Nós fomos, discutimos, mas a gente ficou assustado com a proximidade ali... Da ditadura.

Pellegrini: Brasília ainda tinha uma outra possibilidade que era a criação do PESES com apoio do Juan César García que propõe a criação do PESES na OPAS. Então acabou se criando um núcleo coordenado pelo Arouca.

Ana: Então na verdade a gente quando viu isso, a opção maior era o Rio de Janeiro. Mas nós percebemos, logo que chegamos aqui no Rio, que também o Instituto de Medicina Social não tinha nos oferecer objetivamente uma possibilidade concreta. Isso foi uma coisa que ficou muito clara embora as relações de maior fraternidade que nós tínhamos com o Instituto de Medicina Social. Mas também era um lugar que já estava ocupado, digamos assim, e isso nós discutimos estrategicamente porque a entrada da gente no Instituto nesse momento pode desequilibrar um projeto, uma possibilidade que já estava se dando lá e que nós achamos que isso não seria justo nem para o Instituto e nem para nós.

Reinaldo: É isso que casa com o depoimento do Sérgio.

Ana: Agora vai, continua Sérgio.

Sérgio: Onde é que eu estava mesmo? Até me perdi... Me deixa fazer a minha História Factual porque eu não estou me metendo na tua História Social (fala ao José em decorrência da? intervenção dele durante seu depoimento). Pois então, o PESES foi montado basicamente por pessoas que vieram de Campinas e do Museu de Antropologia que eram Isabel Pitaluga, a Ana Clara, a Tatiana e o Braga que era economista. Ainda veio uma segunda leva com o Joaquim, a Marília, o Caniço...

Ana: Esse projeto abriu possibilidade para nossos ex-residentes, antigos residentes, todos eles saíram juntos. Ainda tinha o Maia, o Eduardo, a Elizabeth Moreira, o Joaquim, a Rosely, o José Augusto e o Davizinho...

Elizabeth: O Davizinho ficou um tempão escondido na minha casa em 75, logo depois que ele saiu da cadeia. Eu me lembro disso porque em dezembro eu dava plantão dia sim e dia não. Eu era sozinha entre os residentes que tinham vindo para o Rio de Janeiro e o medo de cair na mão da polícia...

Reinaldo: Só um instantinho. Tem uma cena que não me sai da memória e eu acho que está dentro desse contexto. Lá no Instituto de Medicina Social tinha um bar, em frente, chamado de Bar Botafogo. Botafogo porque um dos donos do bar era torcedor do Botafogo, eram todos portugueses, e um dia, almoçando... O David foi preso na Barão de Mesquita... E o David foi solto, ninguém sabia... Ele foi andando da Barão de Mesquita até a UERJ... E eu me lembro que naquela época o David já estava gorducho... Era 75... E o que não me sai da memória era ver aquele homem magro, magro... 25, 30 quilos mais magro... Esquelético... Aí eu fiquei olhando o David, que foi meu contemporâneo de Praia Vermelha, meu e do Noronha (referindo-se ao José), não é? E eu não reconheci o David e foi uma cena do David completamente pirado. Enfim, um pouco do clima daquela época...

Guilherme: Bem, se nós pudéssemos, num depoimento, caracterizar de forma bem específica essa transição, essa coisa do contato com a UERJ e da coisa da FIOCRUZ, ajudaria a gente a estar montando esse quebra-cabeça...

Reinaldo: Bem, mas eu acho que isso a Ana já colocou. Porque que não ficou na UERJ...

Guilherme: Não. Eu digo de ação concreta nessas questões...

José: Eu acho que o Guilherme tem razão nessas coisas, Reinaldo, porque você e o Sérgio... Não deixaram limitado... Que a questão do PESES/PEPPE... Por que o PESES/PEPPE é criado? É isso que vai abrir o espaço, com o Arouca e com o Eduardo, para que a Escola de Saúde Pública rompa com seu passado e não precise recuperá-lo. Quer dizer, o Arouca no PESES e o Eduardo na epidemiologia vão marcar a ruptura com a velha epidemiologia e com as velhas Ciências Sociais. O problema é porque a FIOCRUZ, de início são simples e meras relações afetivas, mas a FIOCRUZ era uma instituição poderosa...

Maria: O problema é qual é o projeto que dá esse apoio à FIOCRUZ...

Reinaldo: Eu acho que era dinheiro demais; tinha uma ligação do Sérgio com a ENSP; mas o essencial era que Dr. Pelúcio... que Fábio Celso de Macedo Soares, que era diretor à época...

Sérgio: E Fábio Erberton, que foi também importante nisso...

Reinaldo: Então, havia dinheiro. Era tanto dinheiro que um chefe de Departamento negociava um projeto...

Sérgio: Mas tem o outro lado, a Fundação nesse momento... É do Ministro Reis Veloso... É amigo do Vinícius... E põe o Vinícius na Fundação coberto de dinheiro. Quer dizer, você vai recuperar essa Fundação. O que a busca do Governo Geisel, deletar o passado. Quer dizer, a grande Fundação de pesquisa vai renascer de novo. Ou seja, enche aquilo de dinheiro...

José: Acho que é necessário registrar isso. Não se tratava de buscar o Kora e sim, o Arouca. Entendeu? O Vinícius, como o Sérgio “tá? dizendo, como qualquer outro epistêmico da época ou qualquer crônica de costumes não estava interessado no Kora, nem num assistente nem num amigo meu direto como o Válber, “tava? interessado num projeto de Brasil, num projeto de nação, e o Arouca tinha um projeto de Brasil.

Maria: Eu queria comentar só uma coisa. Eu acho que havia também um projeto nacionalista, como colocou ali o Ary, em que era importante que a FIOCRUZ fosse responsável por toda a produção de vacinas. O que era considerado uma questão de Estado. Isso foi muito importante. O Vinícius foi pra lá talvez porque isso fosse muito claro para os militares àquela época. Entendeu? Era uma questão de segurança nacional...

José: Sim, mas ele preferiu um imunólogo...

Maria: Não. Mas a questão dá vacina era muito importante por causa da meningite. A conjuntura da meningite em 74 que mostrou a fragilidade do país. A FIOCRUZ iria produzir as vacinas que iriam proteger a população. Isso dentro do projeto nacionalista da dependência.

Sérgio: E uma das coisas que fez o PESES e o PEPPE irem até o fim é que eram um programa conjunto. Não era um programa só da Fundação porque tinha a FINEP do lado de lá. Ninguém era tarado de brigar com a FINEP. “Pô?, o Eduardo Costa que era da Fundação Oswaldo Cruz comeu o pão que o diabo amassou. Ele não tinha a sopa que eu tinha, que o Arouca tinha... Que todos nós tínhamos porque não éramos da Fundação. Era um programa que era pago, sei lá como ele era pago... Mas não eram funcionários, então também não vamos pensar que era uma coisa mole, não vamos pensar nisso, não!

Ary: Só pra fazer um parêntese nessa questão que o Noronha colocou. Eu na época não “tava? lá não. Eu era estudante de Medicina. Mas eu acho que a hegemonia sobre o aparelho do Estado não era tão absoluta assim.? Acho que o Arouca entra, e entra por uma coisa fortuita como o Sérgio “tá? colocando mesmo. Eu acho que você tem brechas no aparelho de Estado como essas que permitem essas coisas.

Sérgio: É claro, ué? Não era uma coisa tranqüila, sem controle, sem contradições, “pô?. Eu me lembro... De um grande atrito, lembra... Eles queriam tirar a gente da ENSP e jogar a gente lá no pavilhão de cursos lá atrás. Eu me lembro do Guillardo...

Ana: Eu me lembro que nós estávamos trabalhando no projeto de meningite e de repente acabou o projeto, lembra? O projeto foi cortado. Não tinha mais projeto.

José: Acho que o Elio Gaspari mostra bem isso nos livros dele. Há um recrudescimento da repressão... A vigilância política aumentou muito, não é? Isso foi no movimento de 78 em que a gente fez o concurso e depois o SNI não deu licença pra gente ser contratado.

Pellegrini: Essa convivência do PESES com a FIOCRUZ e em particular com a ENSP. Por outro lado eu acho que foi uma estratégia muito interessante essa da FINEP de financiar um projeto por um tempo e depois obrigar de uma maneira que a FIOCRUZ assumisse o apoio. É a lógica do apoio institucional. Para depois a coisa se consolidar. Então no primeiro momento havia como que um certo pacto de tolerância. Então esse grupo meio esquisito... Ninguém pediu ficha do SNI pra nós, bom, pode ser que alguns de nós tivessem tido algum problema. Mas no momento da transição, em que acaba o PESES/PEPPE e a FIOCRUZ tem que assumir, aí aparecem uma série de contradições interessantes. Por um lado muitas pessoas foram incorporadas pela ENSP e isso gerou uma certa modernização da ENSP, de alguma maneira o PESES que era uma coisa lá no 10º andar, a convivência era meio separada, parecia um enclave...?????????????????????????????????????

Elizabeth: A gente era conhecido como os intelectuais de Campinas. Eu me lembro da Drª Elza Paim discutindo um relatório que a gente fez, dizendo que não sabia que intelectual também tinha senso prático.

Sérgio: Mas isso era a coalizão da ENSP que existia. O PEPPE era mais integrado à escola, era praticamente só epidemiologia. E no PESES você tinha o curso de economia e saúde. A Tereza Oliveira veio depois.

Maria Luísa: Eu acho que é isso que está sendo falado aqui, agora, é a contribuição mais importante que tem pra saber o porquê do Arouca e o porquê que surgiu esse movimento todo. Foi a diferença da intelectualidade, não é mais aquela medicina, não é mais só médico. Tanto é que a tese do Arouca é sobre quem? É sobre Foucault, sobre um ou outro conceito que não é o médico mais. Ele começa a incorporar outras coisas que novamente ele encarna e representa, e é porta-voz.

Sérgio: O lugar de Foucault aqui no Brasil era no Instituto, no IMS, o PESES não foi moderno neste sentido.

Reinaldo: Curioso que era o IMS, mas o IMS que tratou de Foucault ele foi uma espécie de um implante, na verdade foi produto de dois quadros, duas lideranças, um foi Roberto Cabral de Melo Machado que era pernambucano e Jurandir Pedro Costa, em 76 foi aí que Foucault... O Roberto foi pra lá pelo mesmo motivo que Sérgio e Ana assuntaram por lá. Mas isso porque, porque era um campo anti-instituição: aberto, cabeça aberta pra você trabalhar, tinha dinheiro... Tinha a FINEP. Por que foi a FINEP que também apoiou pesadamente o projeto de Roberto Machado. Então Foucault entrou assim no Instituto de Medicina Social, esse é até um outro problema, uma questão que tem a ver com a trajetória da saúde pública, mas não diretamente a ver com o Arouca já que esta a questão que não foi bem resolvida. Nós que tínhamos uma tradição. Quer dizer, o projeto este que o Noronha falava, Campinas, Ribeirão Preto, embora não colocasse com clareza isso, a tradição era: Estado, era Socialismo, era Robert Carr, e o Foucault veio pra botar tudo isso pra baixo. Na esquerda a gente continuou achando bacana aquilo, mas achou também Foucault bacana. Isso é uma questão teórica e política que o movimento sanitário brasileiro jamais conseguiu resolver adequadamente. Quem lembrou dessa questão só pra fazer referência foi o José Luís Fiori, faz uns dois ou três anos, no aniversário do Instituto de Medicina Social.

Mas isso é uma questão real, Foucault entrou no IMS como um implante extremamente produtivo, importantíssima a pesquisa do Roberto Machado, fantástica. Ésio e Nina não tiveram praticamente nada a ver com isso.

Elizabeth: Eu só queria lembrar também que o Foucault entrou na Medicina brigando com dois autores, Talcott Parsons e Merton, os funcionalistas. Isso foi antes ainda em 72.

Reinaldo: Mas deixa eu te dizer, isso não seria com uma tradução digamos de esquerda... porque o nosso inimigo de classe era Talcott Parsons e Merton, colocar Foucault brigando com essa gente era cômodo para o Foucault. Foucault briga é com o Estado, com o Socialismo, com o projeto coletivo.

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[1] Sérgio Arouca vem para o Rio de Janeiro em 1976. Anamaria Tambellini e seu filho Pedro vêm antes, em 1975, com a ajuda de David Capistrano.

[2] Vladimir Herzog, jornalista torturado e morto em 1975 nas dependências do DOPS.

[3] Guilherme Rodrigues da Silva (USP).

[4] Alberto Pellegrini: colega da faculdade de Medicina e era do PCB.

[5] Ministro Jarbas Passarinho: Ministro da Educação no Governo Geisel.

[6] Arlindo: atual diretor do Canal Saúde da FIOCRUZ.



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