Ary Carvalho de Miranda Chefe de gabinete de Arouca da Presidência da FIOCRUZ, atualmente é vice-presidente da instituição. (Rio de Janeiro - 05.10.2005) Fita 1 – Lado AAry: Eu sou Ary Miranda, sou médico, sanitarista, me formei na Universidade Federal Fluminense. Trabalhei na Secretaria Municipal de Saúde de Niterói (quando o Tomasini era o secretário). Depois passei um tempo no Instituto Nacional do Câncer, e desde 85 estou aqui na Fundação Oswaldo Cruz. Regina: Você estava contando lá no Fernandes Figueira que você se formou novo... Ary: Não, me formei com a idade normal... Regina: Você contou que tinha uma ligação com o partido, e contou essa história da Secretaria. Ary: Eu entrei pro partido (o PCB) em 72, e tive uma militância política durante a universidade. Em 77, eu era presidente do Diretório de Estudantes Medicina da Universidade Federal Fluminense. Nós estávamos naquela época com aquele movimento todo pela redemocratização, e organizamos uma série de debates – e na discussão sobre saúde a gente convidou o Arouca. Eu não conhecia o Arouca na verdade, nunca tinha encontrado o Arouca. Eu o conhecia de nome, mas não tinha contato pessoal com ele – foi um convite que nós fizemos para um debate na universidade. Aí a gente se conheceu, mas não tinha muito contato, porque eu estava na universidade e ele era da FIOCRUZ. Regina: Nessa época, só pra entender, você era do partido? Ary: Era. Mas a minha militância política não cruzava com a dele, digamos assim... Minha política era dentro da universidade. A ação política do partido era feita dentro do próprio movimento estudantil. Eu estou colocando esse dado porque foi o momento onde nós começamos uma convivência, eu era do diretório acadêmico e resolvemos convida-lo para uma entrevista. Regina: Você ouvia falar dele... Ary: Ele tinha um nome já na época. Depois veio a ser muito maior. Eu estava terminando a universidade, e o Dr. Tomasini quando assumiu a Secretaria de Saúde de Niterói (e a administração de cemitérios da cidade), ele então concebe um trabalho que na verdade muda aquilo tudo, no sentido de estruturar um conjunto de centros e postos de saúde na periferia, a partir de um diagnóstico que tinha sido feito das necessidades de saúde do município de Niterói. Aquilo ali ainda era muito impulsionado pelo que tinha sido a Conferência de Alma Ata, em 78, quando se discutiu exatamente a atenção primária à saúde. Ele me convida para ser o diretor de um dos centros de saúde, que ia ser construído ainda. Já havia alguns funcionando, nos que estavam funcionando o prédio tinha sido feito em comodato, ora com igrejas, ora com outras instituições, e outros iam ser construídos. E ele me chama pra ser diretor, coordenar um desses centros. Eu estava saindo da universidade, era menino, enfim, não tinha nenhuma experiência em relação a isso, e na época eu pensei: “o que eu vou fazer?? Era uma oportunidade profissional que se abria, eu saindo da universidade – eu saí da universidade em novembro ou dezembro de 77. Aí eu aceitei. Vim aqui na FIOCRUZ na época discutir com o pessoal aqui de planejamento, para que eles pudessem me ajudar um pouco. Para assumir aquilo lá, tinha que ter alguma noção de como organizar, algum modelo, etc. Aceitei o desafio. Mas eu tive um tempo de montagem da equipe, os agentes de saúde, identificar outros médicos que pudessem trabalhar, e na verdade em janeiro eu recebi o convite, e até setembro a gente fez isso. Nós começamos a fazer um trabalho. Na época havia uma discussão no Brasil, alguns municípios estavam com essa proposta, Campinas (estava com uma proposta interessante de participação social), Montes Claros (o Saraiva, que é o atual ministro da Saúde, é oriundo de Montes Claros, participou desse processo), Londrina... Começou então um movimento, por dentro das instituições também, fundamentalmente através de municípios, de desenvolver esse trabalho de atenção primária, que buscava de alguma maneira uma participação social na organização dos serviços de saúde, e foi aí que eu comecei minha vida profissional. Na verdade eu tinha feito meu internato em clínica médica, doenças infecto-contagiosas (o chamado DIP), e mesmo como diretor do centro de saúde eu continuei fazendo clínica – eu gostava muito. Mas foi meio inevitável, esse negócio foi um empuxo para a saúde pública. Depois eu fiz a residência na FIOCRUZ, fiz especialização em planejamento. Regina: Esse primeiro momento em que você encontra o Arouca, quando ele foi na Fluminense, era um convite do diretório acadêmico. Você era colega do Guilherme... Ary: A gente militou junto na universidade, apesar de ser de outro partido: ele era do MR-8, eu do PCB. Mas a gente tinha uma relação afetiva muito grande, então a gente teve um período em que militou junto na universidade, conheço o Guilherme desde aquela época. Regina: Quando vocês trouxeram o Arouca, como foi? Ary: Nós estávamos organizando uma série de palestras na universidade, sobre vários temas, e no tema de saúde convidou ele, pra fazer uma discussão. Ele tinha uma posição de destaque, tinha defendido a tese de doutorado dele em 76, fazendo uma crítica ao modelo preventivista brasileiro, e recolocando (já naquela época, veja bem) o modelo da saúde coletiva como alternativa a esse modelo da saúde pública. Interessante, porque naquela época, 76, ele já tinha feito tese de doutorado discutindo isso – O Dilema Preventivista. Enfim, ele já era um nome, era um intelectual que estava pensando, e ao mesmo tempo ele tinha uma militância no partido, e atuava de uma maneira geral. Tinha uma projeção, e a gente o convidou para esse debate. Mas como eu tinha dito antes, isso não se traduziu numa convivência cotidiana com ele, até porque eu estava na universidade, depois estava na Secretaria, já como médico, sanitarista. Eu vim fazer curso aqui na Escola Nacional de Saúde Pública, ele era professor da ENSP, na área de planejamento, aí a gente passou a ter alguma convivência, como eu tive com outros professores aqui na FIOCRUZ. A Anamaria Tambellini foi a pessoa que coordenou o primeiro curso que eu fiz quando entrei aqui na FIOCRUZ para fazer a residência, chamava-se Treinamento Avançado em Serviço – depois passou a ser residência no meio do caminho. Então foi nesse período que se iniciou essa convivência. Regina: Eu acho interessante, você estava contando pra gente no Fernandes Figueira, o clima desse momento, ainda do final da ditadura, Você foi fazer o Mestrado em Medicina Social... Ary: Isso foi depois. O trabalho que a gente estava fazendo na Secretaria de Saúde de Niterói foi um trabalho... O Moreira Franco era o prefeito de Niterói, tem um dado importante nessa conjuntura: ele tinha sido eleito prefeito em 76 com o apoio da esquerda, era do MDB, não era o Moreira Franco de hoje – é importante localizar isso... [risos] E enfrentando duas candidaturas importantes: uma do Chagas Freitas, e uma da ARENA. Então ele é eleito num arco de alianças que ia do centro pra esquerda. O projeto de saúde do município de Niterói era algo partícipe dessa grande frente política. Quando há a reforma partidária em 79, ele faz opção pelo PDS (a ARENA vira PDS), e recompõe todo o arco de alianças dele dentro do município. Começou a boicotar o trabalho que já estava sendo feito em função daquela aliança política. Vai exonerando todo mundo – inclusive o próprio Tomasini. Todos os diretores, os chefes de unidade – eu inclusive. E a partir daí meio que deixou as pessoas na geladeira, quem ficou foi pra geladeira. Então na época fui fazer o Mestrado em Medicina Social da UERJ, em 82. Naquela época o Mestrado eram 4 anos. Eu fiz as disciplinas, fiz tudo. Em 84 eu fui trabalhar no INCA. Naquele momento a sociedade brasileira estava vivendo o momento do processo de redemocratização, a luta pela Constituinte, pelas eleições diretas. Não conseguimos, mas veio a eleição do Tancredo no Colégio Eleitoral. Isso já significou um realinhamento das forças políticas nacionais. O Tancredo morre antes de assumir, o Sarney assume, mas mantém o que o Tancredo tinha construído enquanto frente para estruturar o governo dele. Naquele mesmo momento, naquele clamor pela redemocratização, várias pessoas importantes assumiram cargos no governo: o ministro da Previdência era o Waldir Pires, o Ésio assumiu a Presidência do INAMPS. Internamente, aqui na FIOCRUZ, não tinha eleição pra presidente, mas houve um enorme movimento no sentido de questionar a gestão que estava estabelecida aqui dentro, e o Arouca surge como um nome. Discussão em toda a FIOCRUZ, abaixo-assinado, um apoio vigoroso interno da FIOCRUZ, ao mesmo tempo em que o movimento da reforma sanitária se propagava nacionalmente. Então ele vem também com enorme apoio nacional pra assumir a Presidência da FIOCRUZ. Isso significou não só a luta política ou a expressão política do chamado partido sanitário, que discutia desde a época da fundação do CEBES (meados da década de 70) uma nova organização do sistema de saúde brasileiro – um sistema que tem uma capacidade de exclusão enorme. Pra você ter uma idéia, pra você ter acesso ao serviço público de saúde, tinha que ter carteira assinada, enfim, era uma coisa monstruosa do ponto de vista da exclusão. Já se discutia naquela época uma nova concepção, um novo modelo de saúde pública, antes de tudo, você incorporar a população mais pobre, ter uma racionalidade, é isso que a gente vai ver depois colocado no texto constitucional e na Lei Orgânica de 1990. Bom, esse processo então extrapolou o campo da saúde pública, ganhou os partidos políticos, a sociedade. O Arouca na verdade quando é nomeado, é nesse processo todo, com uma forte legitimação interna, com um forte movimento por parte dos funcionários da FIOCRUZ, e ao mesmo tempo tinha uma forte legitimação dentro do chamado partido sanitário e do movimento da saúde pública, e dentro também dos partidos políticos que estavam compondo o governo. E o Carlos Santana tinha sido nomeado ministro da Saúde. Ainda assim não foi uma coisa fácil, veio aquela coisa: “ah, é comunista, vai nomear um comunista pra presidente da FIOCRUZ?? Então esse processo também nos aproximou bastante, aí já no processo da redemocratização, da Constituinte, da reforma sanitária. Desde aquele momento em que eu o conheci pessoalmente em 77 até 85, a trajetória nos aproximou mais um pouco por conta de tudo isso. Da experiência que eu tive em Niterói, o trabalho que eu estava fazendo lá, luta pela Constituinte, pelas eleições diretas, tudo nos aproximou. Aí tem um dado interessante: quando eu fui exonerado da Secretaria de Saúde de Niterói, a minha militância política no partido que era em Niterói, o partido tinha essa lógica... Eu saí e vim pro Rio. Eu passei a me organizar na base do partido no Rio, aí eu passei a militar com ele, com o Arouca. ??????????? A vida seguiu. Quando ele assumiu a Presidência da FIOCRUZ, ele me convida pra vir trabalhar com ele. Foi uma coisa interessante, porque eu me lembro que a gente estava no Amarelinho, aquela coisa fogosa, discutindo democratização... E o Amarelinho era um ponto importante de referência, nós tínhamos o nosso “Chopp Democrático? toda sexta-feira, não precisava marcar, toda sexta-feira a galera saía e ia tomar um chopp no Amarelinho. E ali se discutia tudo, na gandaia, se discutia tudo. E uma vez o Arouca me dá uma carona (me lembro disso), ele morava em Santa Teresa, eu morava na Santo Amaro ali na Glória, me deu uma carona, a gente foi conversando e eu falei uma coisa pra ele (estava já amadurecendo a idéia da Presidência da FIOCRUZ): “Arouca, podia pensar a Presidência da FIOCRUZ com uma perspectiva outra, de amanhã ou depois você assumir uma vaga no Parlamento. Não usar a FIOCRUZ como trampolim pra isso, absolutamente, mas se conseguir fazer um trabalho bem feito, consolidado, com visibilidade social, acho que vai ser bom...? Era um desses papos que rolavam na mesa de botequim... Bom, moral da história: quando ele assumiu, eu não sei por que razão ele me convidou pra ser chefe de gabinete, eu nunca soube [risos]. Ele nunca falou assim: “olha, te convidei pra ser chefe de gabinete por essas e essas razões?. Ele ligou pra minha casa (tinha saído a nomeação): “oh, quero te convidar pra ser chefe de gabinete da FIOCRUZ?. Primeiro que eu não conhecia a FIOCRUZ, eu conhecia a ENSP, onde eu tinha feito os cursos, eu entrei pra FIOCRUZ pelas portas da ENSP. Aí eu mandei a clássica: pedi 24 horas pra pensar [risos]. A mesma coisa que eu tinha feito com o Tomasini na época. Porque eu fiquei um pouco assustado mesmo, eu não conhecia a instituição. Depois tudo bem, eu aceitei, e começamos um processo de preparação pra entrada aqui. A equipe da Presidência era o Arouca (evidentemente), também tinha o Arlindo, Morel, Luís Fernando (na época eram três vice-presidentes) e eu como chefe de gabinete foi a equipe que ele montou pra começar. O Arlindo teve um papel importante nesse processo, tanto interno quanto externo, na luta pelo Arouca ser presidente da FIOCRUZ. Enfim, um conjunto de pessoas da instituição. Regina: Quer dizer, você era o único... Ary: Que não era daqui, que era de fora. E a gente começou. E foi interessante porque eu é que tinha que chegar um pouco “piano?, tinha que me localizar aqui primeiro, conhecer as pessoas. E foi ao mesmo tempo um processo profundamente transformador da lógica da gestão institucional. Era uma instituição profundamente centralizada, tudo se decidia no gabinete, as unidades técnico-científicas não tinham autonomia gerencial. E com o Arouca era exatamente a idéia da concepção de um novo modelo de gestão, que depois veio a amadurecer, a forma democrática pela qual se nomeia o presidente, os diretores de departamento, que hoje está consolidado no Estatuto da FIOCRUZ, com participação de todos os funcionários. Mas também a participação no processo de gestão, que impulsionou tudo isso. E que era uma coisa meio incerta: como é que você vai pensar que uma instituição “meritocrática?, do campo de ciência e tecnologia da saúde, que trabalha pela “meritocracia? (a excelência de seus funcionários, de seus quadros, o compromisso que têm com a instituição), você pensar essa coisa de democratizar tudo, discutir tudo, estabelecer discussões coletivas pra poder colocar... Era uma coisa meio... Era um assombro isso! Regina: E esse era um projeto de vocês? Ary: Era um projeto de gestão democrática, mas não tinha uma formatação clara. Tinha-se, vamos dizer assim, esse ímpeto de poder trabalhar assim uma instituição dessa envergadura, histórica (com 80, 85 anos), e que pudesse revolucionar o seu processo de gestão a esse ponto. E foi. No início foi criado na época o Conselho Deliberativo. Não havia como hoje um conselho legalmente estabelecido, com diretores das instituições técnico-administrativas, e com representantes da associação de funcionários. Até porque nesse caso particular a Associação de Funcionários da FIOCRUZ era como se fosse um departamento social da Presidência. Quem era diretor da associação recebia uma gratificação, uma coisa totalmente instituída como uma perna da Presidência num trabalho social. Regina: Esse modelo de gestão, eu tô pensando aqui agora, mas na época se discutia muito Gramsci, aquelas discussões sobre a base se expressar no líder. Vocês tinham esse tipo de discussão? Ary: Na verdade não tinha uma referência tão definida, de você pensar: “o modelo de gestão está fundado em que concepção teórica?? Tinha um clamor enorme por democracia, depois de tantos anos de ditadura militar... Não só de ditadura militar, o Brasil teve sua História Política fundamentalmente centrada no autoritarismo, tivemos um espasmo de democracia depois da Segunda Guerra Mundial e só. A História Política brasileira é das oligarquias no poder, profundamente autoritária. Na verdade a gente começa a construir uma democracia mais estruturada, mais sólida, a partir da década de 80. Regina: Quer dizer, como se esse clamor da democracia contaminasse... Ary: Vinha um pouco nisso. Mas é claro que a instituição tem uma lógica, ela não é a sociedade como um todo, se você pegar as normas, a legislação, a lógica que vai orientar a organização econômico-social e colocar dentro, não é isso. Mas de alguma maneira você está trabalhando com esse espírito. E aí os processos vão se dando. Constituiu-se primeiro o conselho técnico-administrativo, que reunia os diretores, mas também todo mundo que tinha participado do processo e queria até discutir. Era uma coisa meio doida, porque na reunião do conselho participavam diretores, mas também aliados que não eram diretores. E esse processo foi amadurecendo assim. Quando você estava falando da associação de funcionários: ela era isso, era um apêndice da Presidência pra um trabalho social. Houve uma intervenção, nomeamos uma diretoria provisória, ela convocou assembléias subseqüentes dos funcionários, definiu um estatuto e se desvinculou totalmente, passou a ser independente como é até hoje. Hoje em dia a associação de funcionários elege seus diretores com independência, é o processo natural de enfrentamento, ao mesmo tempo de defesa da instituição e de enfrentamento com a Presidência, como o Ministério, com o governo, dentro do processo democrático. Eu acho que a gente vive aqui uma experiência ímpar nesse sentido, muito interessante do ponto de vista dos conflitos naturais que existem entre a direção da instituição e a federação dos funcionários com um grau de maturidade fantástico! Isso tem que ficar claro. A história da ASFOC desde esse período tem sido essa: tem se pautado pela defesa da instituição... Não só da instituição, pela defesa da saúde pública brasileira, sem interesses corporativos, pela defesa da instituição, pela defesa dos funcionários, quando tem que polarizar polariza, quando tem que defender defende. Isso é uma experiência fantástica! Mas foi o processo... Regina: Você estava me dizendo na outra ocasião também sobre não ser partidário... Ary: Isso, sempre suprapartidário, exatamente. O que é interessante é que, do ponto de vista da instituição, isso foi amadurecendo. Foi criada essa figura (acho que outras pessoas devem ter falado em entrevistas) do congresso interno da FIOCRUZ, que é um momento em que você reúne a representação de toda a instituição, com teses pré-pensadas, discutidas, amadurecidas, e isso na verdade é a instância maior de decisão estratégica da Fundação. Constituiu-se o conselho deliberativo, como eu havia falado, com os diretores das unidades mais integrantes da associação de funcionários – como uma instância maior de direção. Tudo isso acabou sendo consubstanciado no próprio Estatuto da FIOCRUZ, hoje consolidado, aprovado, o Lula assinou esse estatuto, foi uma briga desde que o Arouca entrou, em 85, 86 a gente formulou a primeira proposta, definido problema de cargos, uma série de questões que orientam a vida institucional, e a gente conseguiu a aprovação agora, em 2003. Foram quase 20 anos de luta para conseguir. Hoje a instituição tem uma estrutura consolidada do ponto de vista de normas claras, um processo democrático de gestão, e o que tem sido interessante é que tudo isso tem se dado de maneira geral num ambiente muito saudável em minha opinião. Felizmente nós não tivemos nenhuma fratura institucional nesse processo de disputa política interna, como se tem visto em algumas universidades. Ou seja, o processo de eleição de presidente da FIOCRUZ, de decisão de direção de unidade ela se dá num processo de discussão, de apresentação de plataformas. Acabou, é claro que tem uma rusga ou outra aqui e ali, mas a integridade do tecido institucional é preservada, quer dizer, há um compromisso de todo mundo com o trabalho. Essa é uma experiência que tem que ser talvez ainda olhada com mais cuidado, com mais carinho. E saiu da cabeça do Arouca tudo isso! Claro que tinha uma equipe trabalhando, mas saiu da cabeça dele! Tinha um pouco essa visão... Falar dele não precisa, não é? Da capacidade. Mas ele reunia, naquele sentido do intelectual orgânico, uma capacidade técnica com uma enorme competência, com capacidade de reflexão e ação política. Esses dois ingredientes dão uma formatação de um intelectual, necessário às transformações – o Arouca tinha isso. Como dirigente ele antevia as coisas. Era uma figuraça!?? Regina: Tinha essa capacidade de congregar. Ary: Mas aí ele tinha muitas capacidades [risos]. O que eu acho que era mais interessante nele era uma enorme... Ele tinha muitas qualidades e muitos defeitos, como todos nós. Mas o que é mais fantástico é que ele trabalhava a questão política, a ação institucional, com uma enorme carga de afetividade. Isso é uma coisa ímpar. É difícil ver nas pessoas de maneira geral, até porque a política gera a competição, a disputa pela hegemonia, é um fator um pouco de endurecimento de algumas pessoas, muitas vezes leva a práticas condenáveis. A carga de afetividade que ele colocava na prática, no processo de consolidação da luta política, ele trazia com ele essa característica. Mas tinha também problemas [risos], porque ele... Mas tinha um outro dado interessante, que eu aprendi muito com ele: eu tive a minha formação dentro do PCB, aliás, se faz muita crítica ao PCB. Todos os partidos comunistas de uma maneira geral muito alinhados à antiga União Soviética tinham naturalmente a influência forte da lógica stalinista, sem dúvida nenhuma. Mas o partido também foi uma bela escola. Acho que pra minha vida ele foi fundamental, pra uma série de coisas. A capacidade de disciplina, de organização, da reflexão coletiva, tudo isso tinha no partido, com um viés, uma influência stalinista. [pausa] Então essa prática, a nossa história, leva muitas vezes a uma competição desenfreada... [pausa] Então, a característica do Arouca era essa, ele sempre via nas pessoas alguma coisa de positivo, de competente. Todo mundo tem, e a nossa tendência de uma maneira geral (ainda mais quando você é hegemônico em algum lugar) é você não aceitar muito isso. É difícil trabalhar com a diferença, principalmente quando a diferença choca com uma série de coisas. O Arouca era um sujeito agregador por excelência, ele era “mãezona?, reunia todo mundo em torno dele acho que por conta dessa percepção, dessa valorização. Todo mundo tem alguma coisa pra oferecer, ele tinha esse lado. Às vezes a gente estava discutindo, aquela confusão...? Naquele processo inicial, a expectativa era enorme, porque você estava rompendo com uma cultura, rompendo com norma estabelecida, uma loucura, a gente trabalhava muito todos os dias, era sábado, domingo, e ao mesmo tempo tinha também uma pressão grande de tudo quanto era lado, pra fazer assim ou fazer assado, porque fulano de tal não pode participar que trabalhou na época da ditadura aqui dentro... Quer dizer, tinha um patrulhamento ideológico, e o Arouca conseguia um pouco agregar todo mundo, nessa lógica de que as pessoas têm alguma coisa pra contribuir. Tem mesmo! Era uma coisa fantástica, com aquele jeitinho dele, assediava todo mundo, com a sua capacidade de reflexão, de direção, com as propostas que trazia e com esse ingrediente afetivo, ele ia dobrando todo mundo com esse assédio dele... Ele tinha, isso é uma coisa que eu aprendi muito. Regina: A questão da inclusão era fundamental pra ele, tanto no local de trabalho, quanto o projeto dele de saúde... Ary: Isso! Quando você pensa a questão da inclusão, o movimento sanitário era um movimento suprapartidário. Ele é vitorioso (e eu acho que ele é vitorioso, até agora tem sido vitorioso), porque tem essa característica. Isso passa muito pela característica das pessoas, não é nem muito ideológico não, é característica das pessoas, porque você é melhor, mais competente... Todos nós temos nossas idiossincrasias, algumas são mais desagradáveis que agradáveis, e isso tudo acaba interferindo em quem decide se inclui ou não. E o Arouca não tinha isso, era interessante, ele colocava pra dentro. Era isso. E tinha outra coisa interessante, que era (nós pensamos muito isso naquele dia), ele tinha uma segurança tamanha da capacidade dele que ele... Essa capacidade de incorporação é isso, era em função dele não se sentir ameaçado. Porque às vezes tem um pouco isso, as pessoas não incorporam o outro porque se sentem ameaçadas. Nessa lógica dele de incluir, eu acho que é isso: ele era tão seguro da capacidade de reflexão, que não tinha ameaça pra ele. Não to endeusando não, mas acho que tinha esse elemento. E outra coisa: ouvia as pessoas. Hoje eu tô como vice-presidente da FIOCRUZ, claro que se você vai assumindo cargo de direção, e cada vez a tendência é ter mais certezas na vida, muitas vezes você sem perceber não ouve as pessoas. O Arouca ouvia as pessoas, isso era uma capacidade, uma característica importante dele. Ele dava atenção ao que se ouvia. Essa agregação era multifacetada do ponto de vista da característica dele. Além do que era um sujeito bem-humorado, também trabalhava com certa leveza, porque ninguém é de ferro! Não é todo mundo que trabalha assim – ainda mais sendo presidente da instituição. Regina: Você ia falar também que esse temperamento dele também trazia umas coisas difíceis. Ary: Muitas vezes não dava! Tudo tem limite. A gente falava: “olha, com essa daqui não dá...? “Ah, então vamos resolver...? E no final não conseguia resolver. Fragilizava-se diante daquilo: “pô, vou ter que tirar o sujeito daqui, vai significar uma perda pra pessoa?. Então esse ingrediente afetivo falava mais alto. [risos] Demitir era difícil. A não ser que houvesse uma coisa muito grave... Regina: Contam uma história que a diretoria decidiu que alguém ia ser demitido, ele foi conversar com a pessoa, tava todo mundo esperando do lado de fora... Ary: Era o cara da procuradoria, ele contou uma história uma história dramática, na verdade não era nem demitir, era tirar o cara da função dele, ele continuaria. Mas aí o sujeito conta a história de uma morte que teve na família, a mãe dele, uma coisa assim. Aí quando sai: “tinha demitido?? Não, tinha promovido o cara! [risos] Aconteciam essas coisas, era esse o jeitão dele. Acho que tinha uns momentos em que a afetividade falava mais alto que qualquer outra coisa – até pautava decisões institucionais. Isso é bom ou ruim? Sei lá... Essa vida tão individualizada, mesquinha, tão pautada pelo consumismo, por essa desagregação toda que a gente está vivendo, esse é um ingrediente que tem que ser cada vez mais valorizado. Talvez não se valorizasse tanto na época. Depois que se acentuam todos esses problemas que a gente está vivendo, dramáticos na nossa sociedade, cada vez mais essa falta de solidariedade, o individualismo, a violência, essas coisas são fundamentais... Regina: Havia um espírito de corpo, não é? A partir do Arouca...? Ary: É, ele era o elemento agregador disso tudo sim. Mas claro, não era só, era o conjunto das pessoas que estavam nesse projeto. É necessário registrar que, não só na concepção do projeto, mas também na implementação dele, na forma... Eu tava falando o negócio da leveza do trabalho, a gente cansava de dizer: “Arouca, hoje...? Uma pilha de processo pra despachar, tava atrasado. “Vamos fazer uma coisa? Vambora?? Pegava as coisas e íamos lá pra Niterói, pra Jurujuba, tinha um restaurantezinho lá de peixe. Aí passava de 1 da tarde até 8 da noite resolvendo as coisas de trabalho, despachando lá no restaurante, tomando chopp. Acabava aquilo, claro que continuava tomando mais. Pensando coisas de trabalho. Então a coisa fluía também desse jeito: “não tá dando, tá pesado aqui?, era uma retaguarda fundamental. O Arouca gostava de tomar Old Eight, aquele uísque horroroso! Ele tomava aquilo. Helena: Ia pra Laranjeiras jogar sinuca. Ary: A sinuca também... São coisas pequenas, mas dá idéia de como se trabalha com outro tipo de ambiente com essa característica. Eu tava me lembrando quando tinha lá o Estação Laranjeiras, era um barzinho que tinha na parte da frente mesas de sinuca oficiais, e tinha uma mesa reservada lá toda quarta-feira a partir das 6 horas da tarde. Aquilo era sagrado – a não ser que tivesse compromisso de trabalho, alguma viagem. A gente saía daqui, eu, ele, Mário Hamilton, (?) e algumas outras pessoas que eventualmente iam também, e era toda quarta-feira de 6 da tarde até a galera não conseguirmos mais acertar a bola porque tinha tomado muito! [risos] É um pouco isso, na verdade você sai do trabalho e leva um pouco o trabalho pra uma situação dessas. Ali na discussão da sinuca lembrava: “ah, e aquele negócio...? Regina: A gente está até tocando num ponto que o Guilherme está trazendo muito aí pro nosso trabalho que é a questão da amizade. Esse tema da amizade nas relações de vocês. Até o que inspirou esse trabalho que a gente está fazendo foi a amizade do Guilherme com o Arouca. Então me parece assim que não era só uma relação de trabalho stricto sensu, mas essa relação se extrapola... Ary: Veja bem: todos nós viemos ao trabalho todo dia, às 8 horas da manhã, e tem uma relação com muita gente. Nem sempre isso se traduz em relação afetiva, em amizade. Ao contrário, às vezes gera inimizade. Esse processo talvez, por todas essas características, foi nos consolidando uma enorme amizade. Eu batizei a última filha dele, a Luna, a mais novinha. Mas isso leva também a um processo de convivência fora do trabalho, fora do partido, que a gente tinha bastante, de fim de semana encontrar, ir à casa de um, na casa de outro, fazer churrasquinho, tomar cerveja. E a cumplicidade, você acaba tendo um grau de intimidade, de revelar a sua vida mutuamente, e isso vai consolidando a amizade dessa maneira. Eu acho que a minha relação de amizade com ele veio em função desse processo: eu não era amigo dele antes. Ela se construiu, se estabeleceu, se desenvolveu a partir desse processo, da convivência, do trabalho no partido, mas com essas características. Porque eu tive ao longo da minha vida no partido quinhentas mil pessoas que eu convivi, mas nem todos eles se transformaram em meus amigos, não fiquei amigo deles nem eles meus. Vários ficamos, felizmente, mas a maior parte não, como é no trabalho também. Então eu acho que esses ingredientes todos da característica deles, da leveza, do respeito, do ouvir, da afetividade, eu acho que ela vai cultuando uma forma de vida que... Ainda bem que aconteceu. Helena: E a gente tem percebido assim depois de mais de 50 depoimentos, que essa fala é recorrente: “o Arouca mudou minha vida?. [pausa] Regina: Esse ponto que a Lelena está falando é interessante. Muitas trajetórias pessoais foram profundamente afetadas pela trajetória do Arouca. O próprio Guilherme, a idéia de ele fazer essa memória do Arouca é porque com isso está construindo a memória dele. Ele foi afetado, o rumo da vida dele foi definido pela história do Arouca. Então a sensação que eu tenho falando assim com as pessoas é que era uma pessoa que... [pausa] Ary: É. Por exemplo, eu vim pra FIOCRUZ pelas mãos dele, e tô aqui desde 85, há 20 anos. Realmente é uma instituição invejável pra se trabalhar, ao longo desses 100 ela se consolidou como uma instituição compromissada com a saúde pública brasileira, com uma capacidade de respostas, dentro das suas atribuições, indiscutíveis. E com tudo isso, com esse grau de agregação, de participação democrática, de participação coletiva, é muito bom trabalhar aqui. Muito bom. De vez em quando nós falamos isso. No dia-a-dia, claro, tem mil problemas, você se aborrece como em qualquer lugar, mas é fantástico, é um privilégio! Principalmente quando você olha o serviço público brasileiro de uma maneira geral. Mas é claro que essa trajetória da minha vida se dá em função de ter vindo pra cá convidado por ele, e o processo todo que se deu, a discussão, a consolidação, isso continuou depois dele, mas sempre de alguma maneira com a participação dele, mesmo depois que ele sai pra ser candidato à Vice-presidência da República com o Roberto Freire, e depois ele é eleito deputado federal em 90. Foi outra... Eu coordenei a campanha dele em 90, quando ele saiu pela primeira vez candidato a deputado federal, na época eu tinha saído do PCB e ido pro PT. Em 1990, e eu fiz pressão também pra que ele fosse pro PT, mas ele... Ele fez uma trajetória dentro do PCB interessante. Ele nunca foi muito assim orgânico do PCB, era um sujeito que tinha notoriedade, que tinha militância, mas na vida dele como parlamentar, depois que ele assume a candidatura dele como vice-presidente e depois como deputado, ele passa a ter compromissos orgânicos com o partido muito mais fortes do que ele tinha antes! Na discussão que se tinha, que eu saí do PCB por discordar de uma série de coisas e achava que era o PT a alternativa que tinha pela esquerda, nós brigamos muito por causa disso e ele disse: “não, de jeito nenhum, eu vou ficar.? Eu falei: “tá bom, eu coordeno sua campanha assim mesmo.? Pra você ver como são as coisas... Eu estava dentro do PT, mas não era muito revelado isso. E a campanha era uma loucura, porque o Arouca era muito indisciplinado, ele deixava a gente muitas vezes em polvorosa naquela loucura dele! Furar coisas... Tinha reunião não sei aonde: “uma reunião em Macaé, em função da campanha?... Aí surgia um troço qualquer, e ele furava às vezes. E era uma loucura, porque eu ficava com a agenda aí eu chamava ele: “Arouca, olha, não dá mais pra furar! Quando você furar mais uma vez...? Porque quando o cara está em campanha, não adianta ir alguém representando. As pessoas querem discutir com o candidato, não é com a sua representação, não adianta o cara organizar um debate lá não sei aonde e o Arouca não pôde ir e mandou alguém que está na organização da campanha. Não existe isso: é o candidato ou não é nada! “Só pode furar compromisso se tiver uma justificativa muito convincente, aí eu vou lá explico, tudo bem. Senão, eu vou dar o troco...? Aí coçava aquela barba dele: “tá certo? [risos]. Aí furava! Quando furava, o cara ligava, e eu: “oh, o negócio é o seguinte, o Arouca pediu pra você ligar pra casa dele, mas você liga entre meia noite e 5 da manhã, porque nesse negócio de campanha, o cara tem que chegar tarde, sair cedo. O telefone vai tocar, se entrar secretária você tenta de novo...? Aí o cara ligava pra casa dele. No dia seguinte ele vinha: “pô!? E eu: “se furar outra vez, vou fazer isso! Vou falar pra ligar pra sua casa de novo!? [risos] E ele coçava aquela barba: “é...? Então tinha um pouco isso: ao mesmo tempo em que deixava a gente doido com essa coisa dele também, da informalidade, muitas vezes dos devaneios dele, quem tava na organização da campanha se arrebentava e ele quando levava o troco ele “encaixava? numa boa... A mesma coisa aí em cima no gabinete: marcava uma reunião, tomava uma decisão, daqui a pouco entravam na minha sala: “pô, se decidiu isso, o Arouca disse que ia fazer isso, nada disso aconteceu!? Eu dizia: “olha, ele pediu pra você ir rápido lá na sala dele, vai lá, entra direto.? Aí o cara entrava, e daqui a pouco vinha o Arouca. E eu: “mas o acordo não é esse?? Então tinha essa coisa, essa convivência pactuada, e ele “encaixava? todas, não tinha essa... Ele exercia a autoridade dele como presidente pela competência dele, pela característica dele de agregar, de pensar, de conduzir. E quando ele estava errado ele “encaixava? todas sem nenhum problema. Regina: Você se lembra de algum momento em que ele tenha ficado muito bravo, alguma situação de conflito... Ary: Com ele? Nós estávamos uma vez numa reunião, não me lembro qual era o problema, com o diretor do Fernandes Figueira, e aí tava eu, o Sergipe, discutindo, a crise lá, eu não lembro qual era. Aí tava quase terminando a reunião, entra o Arouca (a reunião tava sendo na sala dele, eu me lembro disso), aí de repente começa a dar palpite e a conduzir o negócio pra um outro lado que não tinha nada a ver. Quer dizer, a gente já tava acertando o esquema, e ele ia desmontar tudo isso. Qual foi o esquema? Sai, fala com a Hermínia (a secretária) pra ela ir lá, tirar o Arouca de dentro da sala, dizer: “tem alguém chamando lá fora?. Aí ele realmente sai: “peraí que eu vou lá fora e já volto?. E eu: “você vai ficar calado, cara!? [risos] Nós estávamos ali resolvendo aquele negócio a tarde inteira, já tava tudo acertado... Ele coçava aquela barbinha dele... Numa boa, sabe como é que é? Incorporava aquilo, assumia, depois falava: “é, tava fazendo merda mesmo!? [risos] Então ele tinha essa coisa – e era presidente! Então a pactuação, da coisa coletiva, não tinha nenhum problema, ele reconhecia o erro. Por que (eu acho)? Porque ele tinha essa firmeza, entendeu? A firmeza da capacidade de reflexão, de condução, muito inteligente. E ao mesmo tempo essa coisa afetiva, que permitia tudo isso, que dava pra... Regina: Ary, o que você acha que tenha sido o maior legado do Arouca? O que ficou como legado? Ary: É difícil falar num legado. É o que eu falei pra você: a gente tem ainda que estudar, não está feito isso... Fita 1 – Lado BAry: ...depois ele se elegeu deputado federal na primeira, na segunda e ele não gostava daquilo. Não sei por quê. Acho que o Congresso é difícil, não é? Distanciava das pessoas, esse ingrediente afetivo aí não podia pulsar, acho que era por isso. Aquela vida cotidiana de parlamentar, enfiado dentro daquele Congresso, não permitia a ele trabalhar com esse grau de afetividade. Eu acho que ele era infeliz por causa disso no Congresso. Ele falava isso. Aquela frase que está estampada aqui em alguns pôsteres: “me sinto melhor como sanitarista da FIOCRUZ do que como político?. Esse “me sinto bem? na verdade queria dizer que ele não gostava dessa vida parlamentar. Eu estou convencido de que ele não se reelegeu... Aquela política estreita de alianças eleitorais que eles arranjaram que não deu coeficiente (acho que ele teve uns 50 mil votos), porque ele não queria mais ser deputado. Ele não gostava – apesar de ter feito uma bela gestão. Na questão do sangue... Ele brigou ali o tempo todo pra fazer avançar o Sistema Único de Saúde. Como parlamentar, colado na luta política maior, da democratização, das questões fundamentais da cidadania, da saúde pública e da FIOCRUZ (nunca deixou a FIOCRUZ). Regina: O que eu queria dizer com legado não era a atuação política, era algo mais amplo... Helena: Eu queria que o Ary comentasse um pouco sobre aquela votação da estabilidade do funcionalismo público, que teve outdoor falando mal do Arouca. Regina: Quando ele votou pelo fim da estabilidade do funcionalismo... Ary: Ahhhh... Helena: Ele entrou numa discussão com idéias da cabeça dele, pensando algumas coisas. Mas na verdade, o efeito dessa votação foi que as pessoas se sentiram traídas, pessoas da geração dele... Ary: O que aconteceu? Essa coisa da estabilidade tem que ver num contexto pra entender melhor. Havia dentro do serviço público, com o autoritarismo, às vezes o sujeito era demitido por perseguição ideológica. Então todo esse clamor da sociedade que leva à busca da estabilidade foi pautado por isso: preservar as pessoas contra qualquer tipo de perseguição, seja ela racial, religiosa, ideológica, política, partidária. Então aquilo tomou uma dimensão no espírito de corpo do funcionalismo público muito grande! E tinha uma razão: pela escola autoritária. Só que depois você começa a pensar: não pode ser assim! Porque uma porção de vezes você tem uma porção de pessoas incompetentes, pessoas que não têm compromisso, pessoas com condutas éticas condenáveis, têm que ter uma flexibilidade pra não ter essas pessoas no serviço público. E aí a estabilidade acaba protegendo tudo isso. Então como você trabalha? Ao mesmo tempo em que preserva as pessoas independente de sua coloração ideológica, política, racial, você preserva a instituição – no sentido em que você tem que ter dentro dela pessoas comprometidas. Essa votação estava muito polarizada por essas duas coisas. Aí fica difícil! Quando você sai de um processo histórico onde a luta pela estabilidade se dava para preservar a coisa contra o autoritarismo, e você faz uma opção como essa, parece que você está traindo. Mas não é! Helena: Aí ele foi recebido aqui no Rio de Janeiro com outdoor... Ary: Pois é, mas aí não tem jeito! Quando você está na política tem essas coisas, e você tem que ter clareza em relação a isso. Essa opção se dá nesse processo. Hoje, se essa discussão fosse recolocada, talvez não tivesse um outdoor desses. Com a mesma opção, provavelmente não teria. Discute-se isso de outro jeito. Você tem um pouco a reconfiguração da discussão no corpo do funcionalismo público. Helena: A gente pegou algumas opiniões nos depoimentos como se fosse um pouco um equívoco do Arouca. Ary: Eu não diria assim não. Talvez o choque seja esse que eu estou colocando. Não necessariamente ela foi assimilada como essa opção. Aí tudo bem, faz parte. Outro episódio interessante foi o negócio dos cassados. Na época da ditadura ela cassou aqui (todo mundo sabe) 10 pesquisadores, vários saíram do país, fecharam laboratórios: ficou conhecido como o Massacre de Manguinhos. Quando a gente fez a discussão interna aqui para a Presidência da FIOCRUZ, um dos compromissos que a gente colocou foi a reintegração dos cassados, como uma questão de honra. Estavam todos vivos na época, alguns foram contatados no exterior, vieram. Só não tinha como contratar! Porque não tinha vaga, não tinha concurso. O governo federal tinha disponibilizado um recurso em caráter excepcional pras pessoas que iriam trabalhar na campanha do dengue. Estava retornando – o Aedes tinha sido erradicado nas décadas de 50, 60. Era um contrato temporário, de um ano. Aí foi feita aquela articulação política enorme, Darcy Ribeiro, Chico Buarque, teve representação de peça do Brecht aqui na escadaria, uma arquibancada montada, milhares de pessoas, mídia nacional, televisão, jornal... Reintegrou-se os cassados com esse dinheiro, com esse recurso. Mas e aí? Depois de 11 meses... Qual foi a lógica? Você faz um evento com essa envergadura, assume a ousadia correspondendo a um compromisso assumido, e “agora quero ver quem vai cassar eles outra vez daqui a 11 meses?. Moral da história: ficaram todos aqui. Regina: Quer dizer, dá uma visibilidade... Ary: O que é interessante é a ousadia. Se poderia dizer: “isso é uma inconseqüência!? Podia ser visto assim. Como é que você remobiliza a vida dessas pessoas, algumas fora do país em outras funções, vêm pra cá com esse compromisso assumido, e com um contrato tão frágil como esse? O dinheiro tinha sido liderado pro pessoal do combate à dengue por 11 meses... Helena: Vai que dá errado? Ary: Vai que dá errado? A “sacação? no sentido de transformar aquilo num grande ato político, no sentido da ressonância que teve, se colocando como parte da redemocratização da sociedade brasileira, como parte da reconstrução de uma discussão de ciência e tecnologia, da história da saúde pública... Com tudo isso, e o apoio político que teve, colocava sem dúvida uma questão irreversível – apesar da fragilidade do contrato. Regina: O peso simbólico do ato... Ary: Isso. Mas que tinha que se efetivar. Não podia “pagar um mico?, vamos dizer assim. Mobilizou tudo isso, as pessoas voltaram, e 11 meses depois “não tem mais dinheiro pra te pagar?. Então tem essas coisas. Regina: Ary, eu acho que a gente poderia mais como uma finalização mesmo... Quando eu penso é que o Arouca vai formulando um projeto, desde os tempos de faculdade, com a sua tese, ele começa a gestar as suas idéias lá na juventude dele. E essas idéias vão ganhando força, como se ele tivesse um projeto que vai crescendo, e vem aquele momento áureo de fortalecimento das idéias dele, quando ele consegue congregar mais gente. Depois passa para a fase parlamentar, passa pela Constituinte, implantando a idéia de que “a saúde é dever do Estado e direito de todos?. Isso deságua no SUS. Eu fico pensando (não sei como você vê isso de dentro) até que ponto esse projeto é realmente vencedor? Ele consegue se institucionalizar, se firmar? E como você vê a perspectiva desse projeto hoje, no Estado brasileiro hoje? [pausa por problemas técnicos na filmagem, comentários sobre a gravação e o projeto] Regina: É que tem pessoas que vão pra lá, vem pra cá, e na trajetória do Arouca eu sinto que tinha assim um caminho... Ary: É difícil isso, não é? [Regina repete a pergunta anterior] Ary: Deixa eu colocar algumas coisas também do próprio processo. É um “projeto vencedor?, esse fatalismo assim... É claro que teve conquistas fundamentais! Se você pensar que ele saiu de uma sociedade... [pausa por problemas técnicos na filmagem, realocação das pessoas na sala] Ary: Você havia perguntado se ao final desse processo todo, significou um projeto vencedor ou não. Claro que teve conquistas fundamentais, mas eu acho que tem que pensar como um processo mesmo, que um processo não termina nunca. Se a gente pensar que essa trajetória começa num momento em que o país está vivendo pesada ditadura militar, com todas as características que conhecemos, e ainda com um sistema de saúde (como havia me referido antes) com um tom de exclusão perverso, o processo, se pegar do princípio da década de 70 pra cá (quando o Arouca termina a universidade, começa a vida profissional dele), as conquistas foram muitas! O Brasil se democratizou, ou seja, essa luta é parte desse processo. Ela não está centrada só na saúde pública, ela está colada entre poder construir um projeto de saúde pública que pudesse ser inclusivo, justo, democrático, e ao mesmo tempo uma sociedade que pudesse avançar também quanto à desigualdade, em direção ao socialismo. Isso estava colocado no ideário claramente. Atingir o socialismo. Nossas mazelas são muitas? São. Nós acentuamos em alguns aspectos a desigualdade? Sim. Mas também tivemos avanços importantes. A democratização do país está aí, é indiscutível. Do ponto de vista do projeto de saúde foi um processo interessante, que desde a época do CEBES, quando se construiu o primeiro documento, “Saúde e Democracia?, que fazia essa dobradinha, de que a gente só vai conseguir alcançar um sistema de saúde que supere os problemas que tem numa sociedade democrática: tanto é que o primeiro documento era “Saúde e Democracia?. A democracia é que é a base fundamental aonde vai se construir esse projeto. E aí nessa trajetória, depois que o Arouca assume a Presidência da FIOCRUZ e assume a Presidência da VIII Conferência Nacional de Saúde, que foi um momento, um marco referencial desse processo. As conferências de saúde eram feitas todas burocraticamente, dentro do aparelho de Estado, e aquela conferência inaugura uma nova forma de construir o projeto, que foi com a participação da sociedade organizada de uma maneira geral. Desde os profissionais em instituições representativas de categorias, como o CRM, o Conselho Regional de Farmácia e Enfermagem, todas as categorias da área de saúde, sindicatos de uma maneira geral, participação de CUT, todas as centrais. Enfim, tudo aquilo que existia de vivo na sociedade organizada e trabalhava pela saúde, movimento de reintegração dos hansenianos, enfim... A VIII Conferência foi um processo de mobilização da sociedade brasileira do qual todos os estados participaram, uma quantidade enorme de municípios, com o qual a sociedade organizada de maneira geral se envolveu. Se você pensar que está discutindo um projeto de saúde público... Sindicatos rurais do interior do Maranhão participaram! Na época eu fiquei três dias enfiado num convento lá discutindo com mais de 38 sindicatos rurais, naquele processo de preparação da VIII Conferência. Enfim, de tudo isso nasceu uma proposta que se consubstanciou claramente na Constituição brasileira de 88, depois reafirmada na Lei Orgânica de dezembro de 90, durante o governo do Collor. E um sistema que coloca princípios indiscutivelmente avançadíssimos em relação ao que a gente tinha: “saúde como direito de todos e dever do Estado?, a questão da universalidade, da superação da iniqüidade, da descentralização, da participação social. A descentralização foi importante, uma nova racionalização na oferta. O que não significa que resolveu todas as mazelas, ao contrário! Já depois do processo de redemocratização, na XII, que o Arouca tava, ele discutia que era preciso fazer a “reforma da reforma?! Ou seja, a gente conseguiu avançar muito nesse sentido de superar a exclusão, você não tem mais um sistema com essa característica, mas ele tem ainda muita coisa que precisa ser superada! Ainda tem muita exclusão, ainda tem muita desumanização do serviço, tem ainda uma iniqüidade grande com relação à oferta, com relação às regiões do Brasil. E é interessante que, nessa inquietação, ele colocava isso: “a gente tem que discutir a ‘reforma da reforma’?. Apesar de estar seriamente doente, ele assume a condução da XII como uma proposta de antecipação – porque era pra ele ter se realizado no ano seguinte. Decidiu se antecipar. E o que foi interessante também nesse processo é a coisa da inquietação do Arouca. Eu me lembro que já bastante doente, a gente visitando ele ficava fazendo sacanagem com ele tentando ajudar, aliviar aquela situação, fazendo piada, falando de sacanagem, lembrando da vida. Eu falei: “Arouca, levanta daí, vamos sair, vou te levar pra Outback, você vai comer a carne que quiser. Vamos fazer isso?? “Vamos!? Aí num dia eu tava sozinho com ele, perguntando assim: “o que você mais gostaria?? A morte era uma coisa iminente, estava clara, é difícil, não é? “Qual era o seu desejo, nessa situação que você está vivendo?? Que impossibilitava de sair... Você espera que ele vá dar uma resposta assim de caráter de satisfação pessoal, naquele sofrimento horroroso que ele estava vivendo ali. E ele falou: “eu só queria mesmo organizar a XII Conferência.? É incrível! Ele naquela situação, a gente tomado por aquela angústia junto com ele, ele já sofrendo muito no final, tentando atenuar aquela coisa, e ele manda essa! A coisa do imprescindível, que está colocada na orelha do livro. Então isso aí é uma coisa impressionante, me lembro disso. Noilton: Pode repetir isso? Ary: Quando eu perguntava a ele: “nessa situação que você tá vivendo, o que você queria fazer? Qual é a sacanagem que você quer fazer? A gente sai, vamos fazer o que você quiser.? E ele: “o que eu queria mesmo era estar organizando a XII Conferência.? É impressionante. Era isso... [entrevistado se emociona] Regina: É muito forte, porque é muito visceral. Eu acho interessante que a gente está tendo esse depoimento dos dois lados: do lado das meninas que contaram essa história, e o Ary contando. Porque a sensação que eu tenho é de uma pessoa que está realmente integrada àquele trabalho, tudo muito junto. Ary: Parecia que não estava preocupado com o sofrimento, que era óbvio! Parecia que estava com o projeto na cabeça. Regina: Uma coisa muito altruísta também. Ary: Aquela coisa da idealização, o ideário está colocado sempre, sustenta as pessoas – se você tem uma utopia a ser perseguida. Regina: Eu acho que você falou a palavra certa: “utopia?. Marca o Arouca e essa geração. Hoje se fala tanto: “é o fim das utopias?. Certo pragmatismo no ar, especialmente as novas gerações. Na universidade eu vejo muito os meninos assim. É a coisa da tecnologia, e acho que essa geração que lutou contra a ditadura, que construiu isso que está aí hoje, conseguiu a conquista democrática, que na verdade vai se fazendo todo dia, e ainda tem muito que fazer. Mas eu acho que era uma geração que acreditava muito nas utopias. Ary: É verdade. E isso ficou presente até o final da vida dele. Mesmo depois da queda do muro, a década de 90 foi terrível! O esfacelamento de tudo, dos projetos socialistas, a recolocação com força do capitalismo. Ao mesmo tempo em que se recoloca com força traz as mazelas mais fortes também, mas a desesperança ficou muito grande! Você vê a juventude de hoje, é mais difícil você ter um elemento agregador, a busca pela utopia, e o Arouca conseguiu sustentar isso esse tempo todo, até o final da vida. Regina: Ontem mesmo eu estava conversando com meu filho que está fazendo Geografia na PUC. Ele tem um professor marxista, e comentou que estava havendo um debate enorme com um grupo de alunos defendendo o capitalismo veementemente! Isso era impensável na época que a gente estudou, pelo menos nessa área de Humanas. Ary: Os formadores de opinião, o pessoal que estava na luta política tinha a mesma posição. Não que todos os estudantes tivessem a mesma posição, mas aqueles que estavam mais engajados, que tinham mais vigor na participação política, trabalhavam na busca de uma sociedade alternativa a essa. Isso é indiscutível! Hoje eu acho que tem uma pasteurização maior, uma dificuldade de se compreender para onde se quer ir. Regina: Eu acho que esse projeto aponta pra isso, continua apontando pra uma outra sociedade, pra uma outra organização social.?? Ary: Eu acho também! [risos] Mesmo no campo da esquerda muita gente se desiludiu, muita gente mudou de posição. O sonho do socialismo, com todos os problemas da queda do muro, da denúncia do stalinismo, o malogro dos países socialistas, isso trouxe uma desesperança muito grande! Mas eu continuo acreditando nesse projeto. |
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