Brasil: a longa transição para a democracia – da distensão à redemocratização (1974-1989)


Sérgio Arouca com o presidente José Sarney na abertura da VIII Conferência Nacional de Saúde

??????????? Depois de anos de “cerrada? repressão, a segunda metade dos anos 1970 pareceu finalmente prometer dias melhores aos democratas. Já em 1974, ao iniciar seu governo, Ernesto Geisel (o novo ditador) afirmou que a “abertura? ocorreria, mas de forma “lenta, gradual e segura?. Parecia haver de fato um interesse de mudanças por parte do grupo no poder, mas certamente a “abertura? projetada por eles não era a mesma que andava pelas cabeças e pelas bocas dos oposicionistas de todo o tipo – militantes partidários, sindicais, comunitários, religiosos, de movimentos de minorias políticas, entre outros. Alguns destes movimentos e partidos atravessaram toda a ditadura organizados – mesmo que de forma residual. Outros, apenas naquele momento de leve distensão iniciaram sua reconstrução – mas nunca da mesma maneira que no pré-1964 (já que as condições haviam se modificado profundamente).??????

O “projeto? do regime era de uma “abertura? pelo alto, motivada em boa parte pela consciência das transformações na sociedade brasileira e na conjuntura internacional (a crise econômica mundial e as pressões protagonizadas pelo Governo de Jimmy Carter nos EUA), e da necessidade de autopreservação. Tratava-se praticamente de uma institucionalização do regime:

Os regimes ditatoriais modernizadores e não fascistas – de que são exemplos “clássicos?, entre outros, o Brasil pós-64 e a Espanha franquista em seu segundo período – apresentam uma contradição fundamental: desencadeiam forças que, a médio prazo, não podem mais controlar, ou, em palavras mais precisas, desenvolvem os pressupostos de uma sociedade civil que, progressivamente, escapa à sua tutela.[1]

Na sociedade civil circulavam os mais diversos projetos de redemocratização, muitos deles próximos aos interesses do regime. Alguns, no entanto, buscavam uma radicalização do processo, e estes de uma forma ou de outra se fizeram ouvir no longo e tortuoso caminho da redemocratização. A Abertura de fato ocorreria, mas não exatamente da maneira proposta pela ditadura. Há que se diferenciar o projeto de “abertura? do processo que acabaria se dando. A Abertura foi “resultante de um duplo processo: de um lado, conflitos internos ao regime e, de outro, a pressão da sociedade civil.?[2] Havia no interior da ditadura diversos grupos interessados na radicalização da ditadura. Convencionou-se chamar a esses de “duros?. Hoje sabemos que a distinção muito usada entre “moderados? e “duros? muitas vezes encobre uma real compreensão da dinâmica interna do regime. Em muitos momentos essa clivagem não era clara, se modificando caso a caso: o “moderado? de ontem era o “duro? de amanhã, bem como muitos eram “duros? para algumas questões, e “moderados? para outras. O fato é que “a clássica divisão entre linha dura e moderados não dá conta da diversidade de clivagens que configuravam os diversos grupos militares.?[3] Porém, no período analisado, houve o interesse de muitos integrantes do regime em liberalizá-lo, e para isso necessitavam desmontar o aparato repressivo. Nesse movimento, configurou-se de fato uma divisão no seio do regime[4]. O desejo de “abertura? por parte do regime era para valer:

O projeto de abertura, assim elaborado, deveria claramente comportar garantias básicas para o regime: evitar o retorno de pessoas, instituições e partidos anteriores a 1964; proceder-se em um longo tempo – seu caráter lento –, de mais ou menos dez anos, o que implicaria a escolha ainda segura do sucessor do próprio Geisel e a incorporação a uma nova constituição – que não deveria de maneira alguma ser fruto de uma constituinte – das chamadas salvaguardas do regime, as medidas necessárias para manter no futuro uma determinada ordem, sem o recurso à quebra da constitucionalidade (...) o projeto de abertura representava uma volta ao Estado de Direito, a reconstitucionalização do regime, mas não exatamente a redemocratização do país.[5]

Cada vez mais as oposições utilizavam-se dos espaços que o regime oferecia. O partido de oposição consentido pelo regime, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), progressivamente ganhava um real conteúdo oposicionista, enquanto crescia eleitoralmente – sempre com o importante apoio dos pecebistas (vários deputados eleitos pelo MDB tinham algum tipo de ligação com o PCB[6]). As eleições de 1974, e especialmente de 1978, foram marcos do avanço oposicionista. A votação contrária ao regime (simbolizado na Aliança Renovadora Nacional – ARENA) se deveu em parte à desaceleração do “milagre econômico? – em pouco tempo ele se reverteria em recessão profunda. Mas houve também um real aumento da consciência acerca da validade da luta democrática, nas brechas existentes – em detrimento da luta armada desmantelada pela ditadura. Assim, levantavam-se outras bandeiras de luta, como a da anistia dos presos e exilados políticos. Ao mesmo tempo, surgiram os primeiros sinais de vida nos movimentos sindical e estudantil desde 1968. Por sua vez, o Governo Geisel, calcado num projeto nacionalista autoritário (que, além de levar adiante uma política externa relativamente independente, investiu significativamente na pesquisa tecnológica), oscilou no campo político até o fim entre movimentos de distensão e iniciativas repressivas – mas ao fim entregou ao seu sucessor em 1979, João Figueiredo, um país um pouco mais próximo da democratização (talvez mais do que ambos gostariam).

A virada dos anos 1970 para os 1980 trouxe novos ares. A oposição vinha de uma expressiva vitória nas eleições parlamentares de novembro de 1978. O Movimento pela Anistia avançava, ganhando as ruas. O movimento mostrou sua face com grande vigor. O AI-5 expirou no último dia de 1978, por decisão do próprio governo. “Assim, com o ano novo, em 1979 o país reingressou no Estado de direito – ainda precário porque apoiado em uma Constituição imposta, a de 1967, em uma emenda constitucional espúria, arrancada, sob ameaça, em 1969, e em toda uma constelação de leis e decretos que formavam, como se chamou desde então, um verdadeiro entulho autoritário.?[7] Não se pode dizer que a ditadura estivesse encerrada naquele momento, mas ela certamente se veria limitada a partir de então. No entanto, o regime seguiria tomando iniciativas que visassem manter a transição sob seu controle, como a reforma partidária que extinguiu o bipartidarismo em 1979. Ela visivelmente visou a divisão das oposições, unificadas artificialmente no MDB, enquanto os governistas permaneciam unidos, agora no Partido Democrático Social (PDS, sucessor da ARENA). Mas nos anos seguintes, o agora PMDB seguiu como eixo central da oposição, frustrando em parte os planos da ditadura.

No campo social, esse período foi marcado pela retomada em novas bases das lutas sindicais, especialmente dos setores industriais do ABC paulista, onde emergiu a liderança de Luís Inácio da Silva, o “Lula?. A nova geração progressista do sindicalismo ficaria conhecida como “novo sindicalismo?, “supostamente caracterizado por práticas que indicariam sua novidade na recente história sindical brasileira?[8], tais como: ?

origem e centro no setor moderno da economia, autonomia diante dos partidos e do Estado, organização voltada à base e ímpeto reivindicativo direcionado para o interesse dos trabalhadores. Mais do que representar uma etapa do processo organizativo e de luta dos trabalhadores em nosso país, este sindicalismo seria uma ruptura com as práticas estabelecidas no passado. Não um passado genérico, mas principalmente aquele do período 1945-1964.[9]

Em princípios dos anos 1980, acabaram se configurando

dois blocos (...). De um lado, os chamados sindicalistas “autênticos?, reunidos em torno dos sindicalistas metalúrgicos do ABC, agregando sindicalistas de diversas categorias e partes do país, os quais, com os grupos integrantes das chamadas Oposições Sindicais[10], compunham o autodenominado bloco “combativo?. (...) De outro, a Unidade Sindical, que agrupava lideranças tradicionais no interior do movimento sindical (muitas delas vinculadas ao setor conservador do sindicalismo, denominado “pelego?[11]), e os militantes de setores da esquerda dita “tradicional?, tais como o PCB, o PC do B e o MR-8. Estes dois blocos seriam as bases de sustentação dos organismos intersindicais de cúpula que seriam criados ao longo do processo[12].

O primeiro bloco acabaria levando adiante a idéia de formação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), concretizada em 1983; o segundo, julgando que ainda era cedo para a formação da central única intersindical, a princípio manteve organizada a Coordenação Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), acenando ainda com a possibilidade de unificação dos dois setores, para somente em 1986 fundar a Central Geral dos Trabalhadores (CGT). Os dois blocos se afastavam em boa parte pela maneira como concebiam o combate à ditadura e a transição democrática. Os “combativos? defendiam a organização dos trabalhadores e a defesa de suas demandas como o centro da luta pela superação da ditadura (basicamente as posições petistas). Já a Unidade Sindical buscava

evitar enfrentamentos diretos com o regime, conquistar o apoio de amplos setores da sociedade, trabalhando firmemente no sentido de enfraquecer o regime militar e garantir a continuidade do processo de transição, ainda que isto pudesse significar uma certa redução do ímpeto dos movimentos reivindicativos dos trabalhadores [basicamente as posições pecebistas traduzidas no lema “lutar para negociar, negociar para mudar?] (...) o bloco combativo considerava a estratégia da Unidade Sindical como negocista, conciliadora e reformista. A Unidade Sindical, por sua vez, avaliava a estratégia do outro setor como sendo esquerdista e desestabilizadora.[13]

Outra novidade da política brasileira naquele período seria o surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em 1980 – que viveria desde então “às turras? com o PCB. Fruto de um original encontro entre o “novo sindicalismo?, setores progressistas da Igreja Católica (integrantes das comunidades eclesiais de base – CEB’s), grupos oriundos da “esquerda revolucionária? e dos movimentos sociais, o PT adquiriu desde o princípio um caráter frentista e uma forma peculiar de compreender sua própria origem e destinação: “um partido que nasce da consciência que os trabalhadores conquistaram após muitas décadas de servirem de massa de manobra dos políticos da burguesia e de terem ouvido cantilenas de pretensos partidos de vanguarda da classe operária.?[14] Um partido que se via como original, o primeiro oriundo da classe operária, portanto afeito a interferências externas e alianças, que pretendia desenvolver sua teoria e encontrar seu caminho “no dia-a-dia?, na medida das necessidades práticas.

Nos anos 1980, a força da sociedade civil visivelmente suplantou o “projeto? de institucionalização do regime e mesmo o processo de Abertura vivenciado até então, impondo-lhe uma mudança substantiva: a partir de então a redemocratização estaria na ordem-do-dia. O regime perdeu o controle do processo, que passou a ser dividido (e disputado) entre as elites econômicas e políticas de um lado, e as forças populares e suas organizações políticas de outro. A correlação entre essas forças determinaria a profundidade da democracia a ser construída, o caráter do regime que substituiria a ditadura à deriva[15]. Continuavam a circular as mais diversas concepções acerca da democracia, mas logo surgiu um fator que unificou os setores populares. Uma campanha de massas como nunca se viu, centrada em uma singela exigência (que simbolizava todos os anseios reprimidos ao longo dos últimos anos): o voto direto para presidente já a partir da sucessão do Governo Figueiredo – que terminaria em 1985. A campanha das Diretas Já simbolizou o ápice da iniciativa da sociedade civil, “representava um rompimento radical com a abertura limitada e pactuada que o regime vinha implantando e levaria, através da eleição de um presidente pelo voto direto, com uma Constituinte, a uma ruptura constitucional extremamente desfavorável para as forças que implantaram a ditadura militar no país.?[16]

??????????? Em fevereiro de 1983 iniciou-se a campanha, realizada em apoio à emenda constitucional apresentada ao Congresso Nacional pelo deputado federal Dante de Oliveira (PMDB). Logo a direção nacional do PMDB, capitaneada por Ulisses Guimarães, lançou uma campanha nacional, baseada em comícios cada vez maiores pelas mais importantes cidades do país – comícios que logo receberam crescente apoio da sociedade civil organizada (de sindicatos, movimentos de minorias políticas, associações de moradores, igrejas), além da incisiva participação de outros partidos, como o PT. No final de 1983 e início de 1984 se assistiu às maiores manifestações populares do país até então, culminando nos comícios do Rio de Janeiro (10 de abril de 1984, 500 mil pessoas) e de São Paulo (16 de abril de 1984, 1 milhão de pessoas). Mas apesar do apoio popular, a emenda ficou a 22 votos da aprovação, em 25 de abril de 1984. A partir dali a mobilização popular refluiu, e o caminho se abriu para a negociação a “portas fechadas?.

A iniciativa passou rapidamente das ruas para os gabinetes. No refluxo do movimento pelas diretas, organizou-se uma frente política visando superar o regime dentro das regras impostas por ele, ou seja, elegendo através do voto indireto no Colégio Eleitoral um candidato ligado às forças democráticas. Formou-se a Aliança Democrática entre o PMDB e a dissidência do PDS (Frente Liberal, que mais tarde formou o PFL), em torno da candidatura de Tancredo Neves (tradicional político moderado do PMDB, então governador de Minas Gerais) para presidente e José Sarney (senador maranhense recém-saído do PDS) para vice-presidente. Era a tradução da “transição pactuada?:

[o cientista político] Guillermo O’Donnell distingue (...) duas formas clássicas de transição: uma, rápida, com forte ruptura com o autoritarismo vigente, denominada transição por colapso; outra, lenta e gradual, segura para as forças até então no poder, fruto de acordo entre os setores conservadores no poder e as forças moderadas na oposição. Este seria denominado transição pactuada. O primeiro tipo ocorreu na Grécia, Argentina e Bolívia. O segundo tipo (...) deu-se na Espanha, Chile e Brasil.[17]

A chapa Tancredo-Sarney (que contava com o apoio do PCB) saiu vitoriosa da eleição indireta de 15 de janeiro de 1985, derrotando o candidato do PDS Paulo Maluf e inaugurando o período que passou a ser conhecido – por vontade especialmente de seus artífices – como “Nova República?. Para se fazer justiça à mobilização popular pela eleição direta para presidente, deve-se salientar que, “embora derrotado em seus propósitos imediatos, o extraordinário movimento pelas diretas-já foi fator decisivo na vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, impedindo assim a projetada reprodução do regime através de um governo semicivil.?[18] No entanto, uma dessas fatalidades que também interferem nos rumos da História impediria a posse de Tancredo, que deveria ocorrer em 15 de março do mesmo ano, por motivos de saúde – vindo a falecer em 21 de abril. Assim, Sarney assumiu em seu lugar, mantendo o ministério escolhido por Tancredo e prometendo prosseguir com a redemocratização política, o que de fato ocorreu. Ainda em 1985, terminou a censura aos órgãos de imprensa e às manifestações artísticas, e foram legalizados os dois partidos comunistas – PCB e PC do B.

O Governo Sarney foi marcado pelo avanço da redemocratização política, mas também pela reiterada (e tradicional) imposição de limites a quaisquer anseios de democratização social – além dos sucessivos fracassos no campo econômico. Em 1986, elegeu-se a tão ansiada Constituinte, mas com caráter apenas de Congresso Constituinte. Porém, a nova Carta (promulgada em 1988), apesar dessa limitação, foi sem dúvida a mais democrática já produzida no Brasil. Por fim, ocorreu em 1989 a primeira eleição direta para presidente da República desde 1960 – considerada aqui o marco final da redemocratização.

??????????? A transição democrática chegou ao final confirmando sua dimensão conservadora. Pode-se recorrer aqui a Carlos Nelson Coutinho, que apontou a redemocratização brasileira como uma “transição fraca?. Havia um “risco contido nessa forma de transição relativamente ‘negociada’. Nela se verifica sempre (...) a combinação de processos ‘pelo alto’ e de processos provenientes ‘de baixo’; e, decerto, é o predomínio de uns ou de outros o que determina o resultado final?[19]. Como naquela transição predominaram as forças do “alto?, ela “implicava certamente uma ruptura com a ditadura implantada em 1964, mas não com os traços autoritários e excludentes que caracterizam aquele modo tradicional de se fazer política no Brasil?[20].

O governo de transição de Sarney, se não podia ser classificado como continuador do regime anterior (já que de fato fez avançar a institucionalidade democrática, cooperando para a consolidação de um Estado de direito democrático),

esteve repleto desses elementos arcaicos (...): reforçou o presidencialismo imperial, manteve a tutela militar, recorreu abertamente ao populismo na época do Plano Cruzado, valeu-se amplamente do clientelismo, humilhou os partidos, buscou criminalizar a oposição popular (...), tudo fez para esvaziar a Constituinte (...), não promoveu nenhuma alteração substantiva no bloco das classes no poder, conservando intocado o peso político do latifúndio e do grande capital, sobretudo do capital bancário.[21]

A consolidação da alternativa conservadora se deu com a vitória nas eleições de 1989 de Fernando Collor – que simbolizou para milhões de eleitores equivocadamente o “novo?, o jovem pretensamente “caçador de marajás? e divorciado da “velha classe política?. Collor seduzia eleitores frustrados com a “Nova República? e decepcionados com a “classe política?, ao mesmo tempo em que era legítimo representante exatamente das forças conservadoras envolvidas com aquele estado de coisas. A vitória de Collor sobre Lula (então a única opção progressista viável) simbolizou a derrota naquele momento de uma alternativa democrática de massas ao regime conservador.

PCB: a grande crise (1974-1989)?

No período entre 1974 e 1989, o PCB perdeu definitivamente seu papel hegemônico no campo das esquerdas para uma nova agremiação (o PT) e assistiu à erosão de suas bases sindicais. São os anos da “grande crise? do PCB, que praticamente acabaram com o partido. Os anos 1970 foram especialmente difíceis para o PCB. Se antes o partido sofreu uma verdadeira “sangria? de seus quadros para as organizações da “esquerda armada?, a partir de 1974 se tornou (desmanteladas aquelas organizações) o alvo preferencial do aparelho repressivo. O princípio do complexo processo de Abertura, a partir do Governo Geisel, coincide com um aumento da perseguição aos pecebistas (parecendo interessar ao regime o enfraquecimento do partido para a garantia de um maior controle sobre a pretendida distensão). No momento em que o movimento oposicionista deu mostras de que poderia enfrentar a ditadura através de meios legais (nas eleições legislativas de 1974), o PCB

foi fortemente golpeado. Nove membros do Comitê Central foram assassinados pelos órgãos policiais. Uma parte da direção foi para o exterior e o jornal oficial Voz Operária passou a ser editado fora do Brasil. Mas, a despeito das investidas da ditadura contra o PCB, os pecebistas, coerentes com a linha definida pelo VI Congresso, insistiam na manutenção da Frente Democrática para derrotar o regime e, através do caminho institucional legal, restabelecer a ordem democrática no país[22].

Apesar de todas as dificuldades, muitos pecebistas acreditavam que este era seu principal trunfo. Já outros não pensavam dessa forma, e a diversidade de concepções ficaria clara no exílio, tornando-se pública e irreversível na volta dos exilados com a Anistia.

O fim do AI-5 e a decretação da Anistia em 1979 abriram novos espaços para a atuação do PCB e permitiram a volta dos dirigentes pecebistas exilados na Europa, além de inúmeros militantes. No entanto, deve-se recordar que os pecebistas eram obrigados ainda a conviver com a ilegalidade e a repressão (ainda que numa intensidade baixa se comparada aos anos anteriores), tendo dificuldades em reorganizar suas bases fortemente desarticuladas nos anos anteriores. A partir desse momento, se iniciou a atuação pública dos autodenominados “renovadores? – boa parte dos intelectuais de renome do partido, que exigiam a democratização das instâncias partidárias e o “arejamento? do ideário comunista pela concepção da “democracia como valor universal? (título de importante artigo publicado por Carlos Nelson Coutinho em 1979[23]). Também dos chamados “prestistas?, agrupados em torno de Luiz Carlos Prestes, que lutavam pelo “resgate do caráter revolucionário? pecebista e por uma postura de enfrentamento aberto em relação à ditadura.

Travou-se então uma das disputas internas mais difíceis da história do partido, que foi “resolvida? (se é que o termo pode ser empregado) da maneira tradicional entre os pecebistas. Afastadas ou isoladas as dissidências entre 1980 e 1983, a maioria da direção partidária manteve (com pequenas apropriações das propostas de ambos os grupos em disputa) até os momentos decisivos da redemocratização a linha política já consagrada nos anos anteriores: superação processual e pacífica da ditadura através da formação de uma ampla frente democrática intraclassista e atuação nos espaços legais oferecidos pelo regime. A virada dos anos 1970 para os 1980, e os primeiros anos desta década, indicavam que a política proposta rendia frutos. A Abertura seguia adiante, apesar de alguns percalços. A luta contra a ditadura avançava da forma que os pecebistas propunham. Eles não conseguiam, porém, traduzir aquele momento favorável à sua política em fortalecimento orgânico e influência social. Pelo contrário: perdiam progressivamente seu espaço entre os setores progressistas organizados da sociedade e no próprio campo das esquerdas.??

A esse respeito, é necessário comentar o surgimento no período de “setores modernos? do sindicalismo, responsáveis pela retomada do movimento sindical progressista nos últimos anos da década de 1970 – e também sua relação com o PCB. Os atores dessas lutas eram trabalhadores organizados dos setores de ponta do capitalismo brasileiro, concentrados em grande parte na Região do ABC paulista. Esses novos setores sustentaram a fundação do PT, obtendo o apoio de setores da intelectualidade progressista e da “esquerda revolucionária?, extremamente críticos ao PCB. O PT logo se definiu como uma alternativa “à esquerda? dos pecebistas, assumindo um papel oposicionista mais radical, avesso ao diálogo e ao aproveitamento das “brechas? oferecidas pelo regime – criticando o “reformismo? da linha pecebista.

No meio sindical, as diferenças também se acentuaram. Desde as greves do final dos anos 1970, o PCB criticava o pretenso “radicalismo? e “voluntarismo? do “novo sindicalismo?, enquanto este associava os pecebistas ao sindicalismo pré-1964, para eles “pelego? e “reformista?. Tais posições acabaram levando os setores sindicais de PT e PCB para caminhos opostos, contribuindo para a formação de duas centrais sindicais: os petistas apoiaram decisivamente a fundação da CUT em 1983, enquanto os pecebistas, por razões táticas, escolheram permanecer atrelados a setores conservadores do movimento sindical e participar da fundação da CGT em 1986. Aos pecebistas (que além de tudo fincavam raízes em setores mais “antigos? ou “tradicionais? da classe operária brasileira) pareceu mais seguro disputar espaço com os conservadores e fazer valer suas posições, tentando (sem conseguir) hegemonizar a CGT. A alternativa a isso seria conviver com os setores mais “combativos?, que controlavam a CUT e possuíam, em relação ao PCB, a vantagem de um discurso igualmente progressista, mas calcado numa inserção já consolidada nos setores sindicais sobre os quais a CUT tinha ascendência. De qualquer forma, a ilusão da possibilidade de hegemonia pecebista na CGT levou o partido a atuar por vários anos numa central sindical dividida e progressivamente enfraquecida, enquanto a CUT (hegemonizada pelo PT) atravessou a década de 1980 em constante crescimento[24].

O PCB seguiu nos primeiros anos da década de 1980 no seu “delicado equilíbrio? entre atuação institucional e luta de massas, entre o enfrentamento ao regime e o temor a um retrocesso na transição democrática. Tal linha de atuação ficou clara nos momentos centrais da redemocratização, entre 1984 e 1985. Nos primeiros meses da campanha pelas Diretas Já para presidente, uma ausência sentida foi a do PCB. O partido sempre havia defendido a proposta da Assembléia Constituinte – e mesmo após aderir à campanha, reafirmaria a centralidade dessa proposta, à qual subordinava a luta pelas eleições diretas em todos os níveis. Além disso, é razoável supor que, lidando com suas lutas internas e retomando sua campanha pela legalidade, o partido estivesse num momento de certa paralisia decisória e excessivo temor em relação à possibilidade de um retrocesso na transição democrática, “motivado? pelas manifestações populares. Qualquer que tenha sido o motivo, o fato é que o PCB demorou a prestar apoio e a participar efetivamente do movimento, engajando-se apenas quando percebeu sua irreversibilidade.

Com a derrota da proposta das eleições diretas para presidente, o partido afirmou não ter preconceito em relação à negociação. Com o crescente deslocamento da “luta? para a “negociação?, a opção mais viável passava a ser apoiar uma candidatura única de oposição no Colégio Eleitoral que se aproximava – o que o PCB fez sem titubear, seguindo sua divisa de “lutar para negociar, negociar para mudar?. Formada a Aliança Democrática, o PCB prestou apoio imediato à candidatura Tancredo/Sarney, vitoriosa na votação indireta. Com o dramático adoecimento e falecimento de Tancredo, o partido seguiu apoiando o novo governo em seus primeiros anos, passando para a oposição apenas em 1988. Esses posicionamentos mostram que a maioria dos pecebistas não compreendeu em toda a sua extensão naquele momento o caráter conservador da transição brasileira, “pelo alto? (ver argumentação de Carlos Nelson Coutinho no ponto anterior “Da distensão à redemocratização?).

No entanto, malgrado o caráter conservador do novo regime, se completaria o longo processo de redemocratização, com o qual os pecebistas haviam contribuído com sua política de “frente democrática?. Política que o partido, superado o regime ditatorial, manteve ao longo do que considerou um “período de transição? (até a promulgação da Constituição em 1988), e que, assim como não vinha dando frutos mais práticos ao PCB nos últimos anos de autoritarismo, menos ainda os deu nos tempos da “Nova República?. O autodenominado “artífice? da nova ordem decaía, enquanto o (ao menos na aparência) partido anti-sistêmico consolidava-se. O PT aparecia na nova fase democrática como o núcleo principal da oposição de esquerda, e o único em condições de apresentar uma alternativa progressista viável ao novo regime.

O período analisado aqui de forma sucinta pode ser considerado como o da “grande crise? do PCB. Ao longo daqueles anos, o partido foi perdendo progressivamente espaço nas esquerdas e nos movimentos sociais, enquanto ascendia o PT e a CUT. Com a legalidade em 1985, os pecebistas foram obrigados a amargar ínfimos resultados eleitorais. Tiveram que conviver com crises internas que custaram esporádicas cisões e com a crise que acometia o “mundo socialista? e o pensamento marxista em geral. A derrocada do chamado “socialismo real? (traduzida na queda dos regimes do Leste Europeu em 1989 e no esfacelamento da URSS em 1991) seria o golpe final para o partido. Optou-se majoritariamente em 1992 pela transformação do PCB em uma nova agremiação, o Partido Popular Socialista (PPS) – equilibrado entre referências a uma “nova esquerda? e a “herança? (devidamente selecionada) de um rico passado. Enquanto isso, um grande número de pecebistas decidiu seguir sua militância (ou reinventá-la) numa gama de outras organizações, enquanto alguns buscam até os dias de hoje “reconstruir o PCB?. No entanto, se o PCB encerrou suas atividades em janeiro de 1992, pode-se afirmar que os principais movimentos para a compreensão de sua crise final (à exceção da derrocada do “socialismo real?) podem ser encontrados no período entre 1974 e 1989. Quando as propostas pecebistas para a redemocratização em parte foram vitoriosas, o partido encontrou sua maior crise e praticamente se esgotou.

Para tentar compreender esse aparente paradoxo, pode-se argumentar que a persistência de concepções e práticas não adaptadas à nova realidade brasileira seria a principal causa da crise final do PCB. Nesse contexto, houve uma clara incompreensão da política democrática, fazendo com que se mantivesse uma concepção tática da democracia (segundo a qual ela apenas ofereceria melhores condições para a luta pelo socialismo), e não estratégica (compreensão da democracia como o caminho para o socialismo). A isso se juntaram as dificuldades pecebistas em lidar com a transição negociada da forma como ela se deu: uma transição “fraca?, com predominância dos interesses conservadores. O partido, com sua política e suas bases até certo ponto diluídas no PMDB, demorou muito a apoiar as Diretas Já, apoiou corretamente a solução do Colégio Eleitoral e a Aliança Democrática, mas ficou subordinada àquele projeto sem maior independência, e depois disso também ao Governo Sarney. Já o PT e a CUT, assumindo posição radicalmente oposta à forma como se deu a transição e à “Nova República?, se viabilizaram enquanto forças hegemônicas, respectivamente, nas esquerdas e no movimento sindical progressista. Por fim, um outro fator importante foi a crise do “socialismo real?, que reforçou e legitimou tendências e posições já presentes no PCB. Ela seria importante especialmente nos últimos momentos de sua trajetória, quando serviu de justificativa e inspiração para atos mais determinados no sentido da extinção do partido.

(texto produzido por Fabricio Pereira da Silva)


[1] COUTINHO, Carlos Nelson. Democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 1992, pág. 50.

[2] ARAUJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada – as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2000, pág. 118.

[3] FICO, Carlos. Além do golpe. Rio de Janeiro: Record, 2004, pág. 81.

[4] Que teve um momento decisivo na demissão do general Ednardo D’?vila, comandante do II Exército, pelas mortes do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho (ambos militantes do PCB), em 1976.

[5] SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985?. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano – vol. 4, o tempo da ditadura.? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, págs. 262-263.

[6] Como Modesto da Silveira, Roberto Freire, Fernando Sant’ana, Marcelo Cerqueira e outros. Cf. FERREIRA, Marieta de Moraes et al. (orgs.), Vozes da oposição, Rio de Janeiro: Grafline, 2001.

[7] REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, pág. 69.

[8] SANTANA, Marco Aurélio. “Trabalhadores em movimento: o sindicalismo brasileiro nos anos 1980-1990?. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Op. cit., pág. 289.

[9] Ibid., nota 9, pág. 309.

[10] Organizadas por militantes (em geral oriundos da “esquerda revolucionária? e dos setores progressistas da Igreja Católica) contrários à estrutura sindical oficial. Atuavam basicamente a partir das comissões de fábrica.

[11] Sindicalistas que dominaram o movimento sindical em seus anos de refluxo. Vale lembrar que a maioria dos militantes do “novo sindicalismo? iniciou suas carreiras em direções sindicais comandadas por essas lideranças.

[12] SANTANA, Marco Aurélio. Op. cit., pág. 290.

[13] Ibid., pág. 291.

[14] “Discurso de Luiz Inácio Lula da Silva na 1a Convenção Nacional do Partido dos Trabalhadores?. In: Partido dos Trabalhadores – resoluções de encontros e congressos (1979-1998). São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, pág. 107.

[15] Isso não significa? que o governo não influísse mais naquele processo. Além do poder de atração exercido por qualquer governo, vale lembrar que tratava-se ainda de um regime de exceção – algo afirmado através de “decretos-lei? e “estados de emergência? até seus últimos dias.

[16] SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Op. cit., pág. 273.

[17] LINZ, Juan e STEPAN, Alfred. A transição e a consolidação da democracia. Petrópolis: Paz e Terra, 1999, pág. 115 e segs.

[18] COUTINHO, Carlos Nelson. Democracia e socialismo, op. cit., pág. 52.

[19] Id.

[20] Ibid., pág. 53.

[21] Ibid., pág. 54.

[22] PANDOLFI, Dulce. Camaradas e companheiros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, pág. 210.

[23] Esse artigo foi publicado em COUTINHO, Carlos Nelson, A democracia como valor universal – notas sobre a questão democrática no Brasil, São Paulo: LECH, 1980.

[24] A respeito desse tema, cf. SANTANA, Marco Aurélio, Homens Partidos, São Paulo: Boitempo, Rio de Janeiro: Unirio, 2001.




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